domingo, 23 de setembro de 2018

Primavera

Em tempos nefastos, faz-se ainda mais importante falar de amor. 

Era o segundo dia da Primavera, o segundo dia do Sol em Libra. Talvez você acredite em Astrologia e associe o momento a equilíbrio, colaboração. Libra coloca na balança o eu e o outro e mostra que não vamos muito longe enquanto acharmos que estamos sozinhos nesse universo. 

A Lua, ainda em Peixes, aprofundava a conversa sobre sentimentos. Sua água tomava a atmosfera e envolvia a todos em um misto de sonho e intuição: seriam sinais ou apenas imaginação?

Lua e Sol davam o tom daquele encontro. Naquele pequeno restaurante, entre cafés com leite, pães e geléias, estavam os dois. Como sempre, ela beliscava a comida entre uma página e outra do livro, quase sem desviar o olhar. Ele a fotografava, como se estivesse diante de uma obra de arte, e comia pelos dois. 

Parecia mais um domingo comum, e seria, exceto pelo anel que aguardava ansioso no bolso da mochila e pelo jogo já combinado com o garçom, que, antes da conta, insistiria em mais uma olhadinha no cardápio pelo especial do dia.

Olhou pra ela e pensou em tudo que passaram para chegar ali, em quanta coisa cabia em um ano. Eram diferentes em tanta coisa, um taurino e uma pisciana, mas tão parecidos no entendimento de que o amor se construía nas pequenas coisas, na prática diária. 

- Escuta esse trecho - ela anunciou antes de ler e notou que ele a encarava apreensivo. Por que você está estranho?

- Eu? Tá doida? Normal. 

- Normal já é uma palavra que não se aplica a você. Nesse momento, menos ainda. 

- Lê o trecho, anda. 

- Não. Passou o momento. 

- Que momento, meu Deus? O livro taí ainda. Como que passou o momento se o livro ainda tá na sua mão, com a página marcada? Deixa de ser teimosa. Lê o trecho.

- Eeeeeu sou teimosa? Mas era só o que me faltava. Você, justo você, me acusar de teimosia. 

- Pior que teimosa, é cismada. Você cisma com umas coisas que eu sei lá de onde vêm. Tava aí de boas lendo o livro, como se eu nem tivesse aqui, daí pá “você tá esquisito”. To assim desde que a gente sentou aqui. Já parou pra pensar nisso? Hein?

- Cara, é sério mesmo que a gente vai discutir? Não era pra ser um café especial? Você não insistiu pra ser um café especial? Não foi sua a ideia? De inclusive vir aqui? Nesse café caro? 

- Eu não insisti nada. Eu apenas SUGERI. Mas se você estiver tão incomodada assim, a gente pode pedir a conta e ir embora. 

O plano, tão cuidadosamente desenhado, parecia ir por água abaixo. Mas o garçom, libriano, não estava disposto a permitir que isso acontecesse. 

- Pois não, senhor. Mais uma água da casa? O senhor gostaria de olhar o nosso cardápio? Temos hoje uma surpresa que acredito que o senhor gostará bastante. A senhorita certamente apreciará muito. - Ele disse, sorrindo. 

- Surpresa? Mas aqui não é conhecido por um cardápio fixo? 

- Para a senhorita ver. Hoje é um dia especial. Aproveitamos que é Primavera, achamos que o momento pedia, sabe? Algo diferente. Senhor? 

- Ah, sim. Era por isso que vim aqui. O cardápio surpresa. Obrigado, meu bom. Você me empresta aqui rapidinho o cardápio, só um minuto. 

- Você não me falou nada de cardápio especial. Tá vendo? Tá esquisito de novo. Você não é de escolher coisa diferente. Você escolhe sempre a mesma coisa, dos mesmos lugares, dos mesmos pratos e da mesma água da casa. 

- É verdade. Eu gosto de rotina. Mas como o nosso querido aqui acabou de falar, é um dia especial. E ele pedia algo diferente. Pega - ele disse entregando a ela o cardápio - dá uma olhada e vê o que você acha. 

Dentro do cardápio, uma folha solta manuscrita dizia “Casa comigo?”.

- Eu…

- Eu planejei tudo direitinho. Cada detalhe. Eu só esqueci que eu sou uma merda pra guardar segredo e que você provavelmente veria isso na minha cara. 

- Essa briga toda?

- Eu tentando disfarçar, pra não estragar o momento. Caguei tudo? 

- Não. 

- Você tá chorando? Não chora. O que você me diz? Hein? Casa comigo? 

- Pera. 

- Pera? Porra! 

Ela abriu a página do livro que ainda estava marcada e apontou para o trecho que queria ter lido. 

- É um texto sobre… economia? 

- Sim. Eu queria fazer algo dramático, teatral, romântico pra corresponder a tudo isso, mas o livro que eu tô lendo é pro trabalho, então não fez o menor sentido. 

- Hahahahaha! Tá. E qual é a sua resposta? 

- É sim, é claro que sim! 

Livros e cardápios pelo chão, os dois se abraçaram enquanto o restaurante veio abaixo em palmas e algumas lágrimas. 

- Eu te amo. Você é insuportável. - ela disse baixinho. 

- Eu também te amo. E eu sei. - Ele disse, orgulhoso. Amigo, traz a conta pra gente? 

O garçom, contente com sua interferência bem sucedida, aproximou-se da mesa e falou, com uma piscadinha cúmplice: 

- É por conta da casa. Felicidades ao casal. 

- Obrigada! Vem, vamos ligar pra minha avó! Eu quero mostrar meu anel pra ela. E vamos ligar pra sua mãe! Vamos ligar pra todo mundo! 

A felicidade era tanta que mal cabia nos dois. Enquanto saíam do restaurante, se beijavam e tiravam fotos, pra registrar o momento. É claro que nenhuma delas contaria um terço da história, mas, ainda assim. 

O céu amanheceu com se já soubesse. Ela, pisciana, acreditava piamente. Ele, taurino, achava tudo uma imensa bobagem. Tudo bem, essa era não seria a primeira, ou a última, discordância entre os dois. O que importava, no final, das contas, é que olhassem pra isso como olhavam pra tudo: com amor. 

Até porque, eles já sabiam bem, amor é construção. 

segunda-feira, 22 de janeiro de 2018

Biblioteca

Alice chegou em casa e lá estava Caio, sentado entre pilhas e pilhas de livros. 

- Estamos um pouco grandinhos para brincar de forte, você não acha? 

- Ha ha ha. Muito engraçada. Eu estou fazendo inventário dos meus títulos, pra poder botar pra vender. 

- Opa! Posso ajudar? 

- Você não está cansada? 

- Morta, mas isso é divertido. 

- Tem pizza na cozinha e cerveja na geladeira, se você quiser. Mas faz favor e come de garfo, pra não mexer nos meus livros com as patas gordurentas. 

- Show. Já volto. 

Caio estava concentradíssimo, contemplando seus anos de curadoria literária. Escolher de que livros se desfazer envolvia muita ciência. E era difícil. Cada livro ali tinha histórias além das páginas para contar. 

- Fala. O que eu posso fazer? 

- Vai tirando os livros da caixa e me diz o título, autor, editora, data de publicação. Faz suas considerações sobre estado de cada um e coisas que você achar relevantes para eu sinalizar no anúncio. 

- Tá. Esse aqui. Caio, você chegou a ler esse livro? 

- Claro que eu li. Eu li todos os meus livros. 

- Ah tá. Conta outra. Eu já vi você lendo. Você dobra todas as lombadas, faz anotações. Suas capas ficam marcadas. Suas páginas fazem orelhas. Esse livro está em muito bom estado. Você nunca tocou nele depois que saiu da livraria. 

- Alice, fala logo o título? 

- Não, admite. 

- Alice? 

- Admite, cara. Qual a dificuldade em admitir que você não leu seus livros? 

- Caralho, cara. Você é o que? Investigadora forense? Vai desvendar meus mistérios a partir dos meus livros? 

- Talvez. Mas é capaz de você continuar mentindo mesmo quando eu acertar, então não tem graça. 

- Beleza. Vamos. Eu admito. Eu nunca li esse livro. Ele é uma merda. Não consegui passar de dez páginas e larguei mão. 

- Rá. Sabia. 

- Foi sorte. Imposível você conseguir saber se eu li um livro só de pegar nele. Daqui a pouco vai começar a cheirar as páginas e dizer por onde andaram. 

- Me respeita, Caio. Eu sou uma profissional. Eu tô há 10 anos dormindo do teu lado, tomando café com você, eu conheço teus hábitos. 

- Sommelier de livros. 

- Esse aqui, por exemplo. Você leu. - Alice aproximou a lombada do rosto e passou o dedo na sua lateral. - Mas leu sem muito entusiasmo. A história não te empolgou muito, mas você leu mesmo assim. Não gastou muito tempo com isso, só leu. 

- Como você fez isso? 

- PROFISSIONAL, CAIO. PROFISSIONAL.

- Esse você leu. E demorou pra ler. - Alice folheou o livro com cuidado para que a capa não se desfizesse - Viu? Tem até anotações. Esse aqui você viu potencial. Talvez tenha pensado em traduzir, transformar em roteiro., um filme. 

- Sorte. 

- Ok, vai achando que é sorte. Eu afirmo que é talento. 

- Podemos voltar? 

- Não. Que livro é esse? Eu nunca vi esse livro. Olha só, você comprou esse livro quando a gente já morava junto. Aliás, essa pilha toda só tem livros comprados depois da gente ter ido morar junto. Como eu nunca vi esses livros? Você nunca comentou comigo que tinha comprado, sobre ter lido, nada. Que bizarro, Caio. Toda uma parte da sua vida que eu desconheço. 

- Que exagero, Alice. 

- Exagero? Tem até livro de autoajuda aqui. Desde quando você lê autoajuda? 

- Foi minha mãe que me deu. 

- Ah, claro. Tinha que ser. Ela nunca foi com a minha cara. Devia achar que você estava passando por algum processo depressivo, algum surto psicótico pra ter decidido morar comigo. Tá explicado. 

- Meu Deus, que exagero. 

- Exagero, Caio? Olha esses livros. Eu não tenho nem coragem de falar esses autores em voz alta. Olha pra isso. 

- Por isso eu nunca te mostrei.

- É como se eu não te conhecesse mais. 

- Alice, para. Foi uma fase. Eu tava experimentando. 

- E aí? Encontrou o que você queria? 

- Foi legal, mas nada demais. Foi uma fase. Só isso. 

- Enfim. 

- Cara, separa esses livros, vou vender todos por 10 reais. 

- Cada? 

- Todos. 

- Tá caro. Eu não pagaria nem 5. 

- A gente vai ficar muito mais tempo nessa discussão? 

- Não. Vou passar pra outra pilha. 

- Vai continuar com seu joguinho de adivinhação?

- Sim, agora eu preciso me recuperar desse baque. 

- Puta que pariu.

- Shhh. Esse livro foi importante pra você. Nossa, você leu esse livro várias e várias vezes. Ele realmente foi importante pra você. "Caico, que esse livro te abra a mente e as portas para esse novo momento da sua vida. E que nossas estradas sigam se cruzando. Pipa." Quem é Pipa, Caio. 

- Uma amiga antiga. 

- Amiga? 

- Amiga. 

Alice fechou a cara. Pipa. Pipa. 

- Não pode ser. 

- Vamos voltar ao inventário, Alice? 

- Pera. 

Alice pegou o celular. Abriu o Facebook e começou a vasculhar. 

- PIPA! Essa Pipa!! 

- Ai meu cu. 

- Seu cu? Você espera aí que você vai ver o que vai acontecer com seu cu. 

- Alice, pelo amor de Deus. Vamos continuar? 

- Eu achei que não tinha mais nada nessa casa que tivesse qualquer ligação com essa mulher. Mas claramente você fez questão de guardar souvenires, né? 

- Exagero. Eu tenho mais de 5000 livros, esse ficou perdido no meio deles. A gente se mudou 5 vezes ao longo desses anos, eu nunca tive saco de olhar todos eles com cuidado. Na real, eu não queria me desfazer dos meus livros, mas agora eu tô fazendo esse exercício. E tanto esse livro não significa nada pra mim que eu tô vendendo, né? 

- Ela se separou. Você viu? 

- Nem sabia que ela tinha se casado. 

- Ah, sei. 

- E daí?

- Nada. 

- Acabou? 

-  Não sei, acabou? 

- Jura que isso tudo é por causa de um livro? 

- Não é qualquer livro. É um livro com uma declaração de amor. 

- Alice. 

- Que?

- É um livro infanto-juvenil. Eu ganhei quando fui fazer a quinta série em outro colégio. 

- E essa declaração? 

- Claramente eu tenho uma queda por mulheres intensas. Desde pequeno. 

- Ha ha. 

- Você quer conversar sobre aquela girafinha de pelúcia que fica no escritório ou a gente pode voltar a fazer o inventário? 

- Essa pilha aqui, você já fez? 

- Não. Pode falar o título.