terça-feira, 21 de janeiro de 2014

Cena

- Kika? - A voz perguntava do lado de fora do camarim enquanto se ouvia uma batida na porta. - A repórter chegou.

- Pode mandar entrar, obrigada.

A moça loira, já em seus 40 anos, entrou estendendo a mão.

- Oi, Kika. Que prazer em finalmente te conhecer.

- O prazer é meu, Laura. Uma repórter tão renomada quanto você, o prazer é meu.

- Eu achei curioso que você tenha me requisitado nominalmente, na verdade.

- Claro. Entendo sua estranheza. É que o assunto era de extrema delicadeza e eu achei importante que fosse alguém como você a cuidar disso. Alguém talentosa, séria como você.

- Fico lisonjeada.

- Podemos? A peça começa em pouco tempo, ainda preciso me maquiar. Desculpe pedir que viesse assim em um horário tão espremido, mas minha agenda estava realmente...

- Claro, claro. Eu entendo. Vamos.

- Bom, você sabe que eu e o Cássio tivemos um longo relacionamento. Nossa história é antiga.

- E bastante pública.

- Sim. Não. Na verdade, isso é o que vocês pensam. Muita coisa ficou de fora.

- Hum?

- É. Vocês não sabem de tanto quanto vocês pensam.

- Sim?

- É muito difícil pra mim comentar sobre isso, falar abertamente, mas eu acho que é importante eu assumir, não só por mim, mas... O Cássio... Ele me bateu.

- Bateu?

- Sim.

- Não batia?

- Desculpe?

- Não, é que achei curioso o tempo verbal.

- Como?

- Você declarou como se fosse algo que aconteceu uma vez. Bateu. Não algo que talvez tivesse acontecido de forma frequente. Batia.

- Não estou te entendendo.

- Está sim. Me perdoe, Kika, mas eu já havia ouvido os boatos. Entre suas maquiadoras, cabeleireiras e outras pessoas que já trabalharam com você desde a separação. Essa história de que o Cássio talvez tivesse te batido não é novidade. Eu achava que você de repente tinha me chamado aqui hoje pra anunciar algo mais... Interessante.

- Interessante?

- Não me entenda mal. Se eu de fato achasse que essa história era real, eu seria a primeira a pular nela. Mas eu não acho que seja nem de longe verdade.

- Você acha que eu inventaria algo assim?

- Sim, eu acho. Você deve imaginar que eu acompanho sua carreira desde sempre. E é claro que isso implica em acompanhar sua vida também. Você nunca foi exatamente uma pessoa que prezou pela sua privacidade, convenhamos.

- Era só o que me faltava.

- E eu imagino que o fato de eu ser feminista e, talvez, uma das poucas repórteres que ainda é levada a sério nesse meu ramo... Bom, isso deve ter influenciado na sua escolha.

- Eu te chamei aqui porque eu te respeito, Laura. E eu gostaria que você me respeitasse também.

- Claro, e eu estou te respeitando. Estou te respeitando, inclusive, te dando a chance de não insistir nessa história. O que te levou a começar isso? Ele ter sido chamado pra assumir um núcleo na emissora? O livro que ele vai lançar? Ou o noivado?

- Do que você...

- Não se faça de tonta. Você sabe do noivado. Todo mundo sabe do noivado. Até porque a Silvia não é exatamente uma qualquer. Ela é uma jornalista econômica séria. Conhecida, respeitada. Admirável, eu diria. Artigos publicados lá fora, bonita, jovem, bem sucedida.

- Onde você quer chegar?

- Você tem o que? A mesma idade que ela? Talvez uns 6 anos a mais? E está o que? Fazendo esse espetáculo de quinta. Eu não quero parecer desrespeitosa, mas essa peça é uma porcaria. Não por ser teatro independente, é claro que não, mas por ser uma porcaria mesmo. Só isso. E não é como se estivessem chovendo convites pra você interpretar papéis maravilhosos, eu acho que isso aqui deve ter sido seu melhor papel em um bom tempo. O último foi aquele comercial de seguro. Tô errada?

- Eu vou pedir que você se retire. Eu devia ter falado com aquele outro rapaz, aquele que escreve no outro jornal.

- E ele teria escrito sua história. Porque você sabe que ele escreve qualquer coisa, mesmo que ele tenha certeza de que não passa de um boato maldoso, mas eu não. Por que não dizer que o Cássio é gay?

- Que?

- É, se você quer difamá-lo, por que não dizer que ele é gay?

- ...

- Ah, sim. No meio artístico isso não seria um choque. Ou, pelo menos, não o tipo de choque que você quer causar. Mas bater em mulheres... Isso sim. Seria um ruído terrível nesse momento dele. E ainda jogaria por terra a imagem da Silvia.

- Eu não sei do que você está falando.

- Sabe sim, Kika. Qualquer estariágio que tenha estudado você minimamente saberia que, se alguém nesse relacionamento era capaz de violência, esse alguém era você. Ele esteve do seu lado quando você teve seu problema de bebida, quando você desapareceu e disse que estava indo estudar teatro fora. Todo mundo sabe que você se internou pra cuidar da cabeça, mas ele sustentou sua história. A verdade é que foi você que saiu do relacionamento. Você achava que sua carreira deslancharia sem ele? Você tinha um plano? Me explica.

- Eu preciso me arrumar, o espetáculo vai começar daqui a pouco e eu ainda preciso me concentrar.

- Espetáculo. O espetáculo é isso aqui, esse circo que você quer armar. Sabe o que me fode, Kika? E sim, eu disse fode mesmo, já que eu não tenho tempo, não vou conter meu vocabulário. O que me fode é que eu já apanhei. E não de mentirinha, pra aparecer e pagar de coitada pro público, pra ganhar a simpatia dos outros. Eu apanhei de ter ossos quebrados e hematomas extremamente aparentes. Eu apanhei de ter de chamar meu editor pra conversar e trabalhar de casa, pra não dar as caras na redação e dar margem a conversinhas. Eu apanhei de denunciar meu ex-marido, de envolver polícia e advogado. Nem sempre eu trabalhei escrevendo sobre artistas e televisão. Você sabe quem eu sou. Se hoje eu faço isso, é porque eu escolhi. Porque eu cansei de escrever sobre o que eu escrevia. Não me subestime. E não me desrespeite.

- Você pode sair.

- Posso. Mas eu ainda quero te falar algumas coisinhas. Isso que você tá tentando fazer, é por causa de gente que nem você, mesquinha, mentirosa, inconsequente, que tem cara que espanca a esposa, os filhos, e não é enquadrado. Porque as autoridades, quem é responsável por cuidar disso, não acredita em quem denuncia. Nessa merda de sociedade, é bem fácil que as pessoas achem que as mulheres só querem prejudicar um homem de bem. E é por causa de gente que nem você, que fica inventando história, que tem tanta mulher que apanha e se sente desamparada, acha que ninguém vai acreditar nela. Você me enoja, sabe?

- SAI. DAQUI.

- Eu saio. Tô saindo. Espero que você pense bem sobre essa nossa conversa. Você não deve ter um amigo pra te dissuadir dessa idiotice, então pensa em mim como sua amiga. Foca no que restou da sua carreira. De repente você ainda tem o que salvar aqui. Sua dignidade, talvez.

- LUZIA! AJUDA A NOSSA AMIGA A ACHAR A PORTA, FAZ FAVOR? E LIGA PRAQUELE RAPAZINHO QUE ESCREVE PRO OUTRO JORNAL? COMO É O NOME DELE?

- É João Carlos, Luzia. Pera que eu te dou o número aqui. E pode deixar, Kika. Eu vou dar uma ligada pro Cássio e pra Silvia. Faço questão de escrever um especial sobre o noivado deles, sobre esse momento maravilhoso que ele tá passando, sobre esse prêmio que ela deve receber. Acho que vai ser uma matéria maravilhosa.

- Você ainda tá aqui, meu Deus?

- Não, já tô saindo. Ah, sim. Merda pra você. Muita, muita merda.

quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

Banheiro

Naquele dia, Mariana almoçou rápido e voltou logo pro escritório.

Entrou no banheiro pra lavar as mãos e escovar os dentes e percebeu que alguém estava em uma das cabines. 

Silêncio. Algumas fungadas. Chorando, talvez? 

"Deve ser a menina nova", pensou. "Todo mundo saiu pra almoçar junto, só ela foi sozinha."

Sentiu-se mal. Não conhecia a menina o suficiente nem mesmo pra perguntar se estava tudo bem. 

Lavou as mãos rápido e deixou pra escovar os dentes depois. 

Quis evitar o constrangimento para a menina, imagina sair toda inchada, nariz escorrendo, e dar de cara com alguém? 

Depois ela podia convidá-la pra um café, estender a mão, um ombro. Como quem não quer nada, é claro. 

Isso. Mas só depois. 

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Beth almoçou rápido. Na verdade, engoliu a comida. Tinha feito planos pras duas longas horas de almoço que envolviam qualquer coisa menos ser acometida por uma dor de barriga. 

Talvez fosse o remédio que estava tomando. Talvez fosse algo que tivesse comido. E, nesse caso, seriam muitos os suspeitos. 

Mas nada disso vinha ao caso. Ela precisava voltar logo pro escritório. 

Era bom, já que todo mundo tinha ido almoçar junto, então ninguém estaria lá pra ameaçar seu momento. 

Ela não era do tipo de pessoa que conseguia ir ao banheiro com testemunhas. 

"Ainda bem que eu escolhi um restaurante perto", ela pensou enquanto se apressava. 

Confirmou que o escritório estava realmente vazio e correu um pouquinho mais. Chegou ao banheiro e sentiu aquele alívio. 

Ela tinha conseguido. 

Ufa. 

Beth sentou-se no vaso e, antes mesmo que pudesse fazer qualquer coisa, ouviu a porta abrir. 

"Sério? Quem foi a filha da puta que resolveu vir antes? Todo dia elas tiram mais de duas horas de almoço. Todo dia!"

Prendeu a respiração e concentrou-se em não fazer barulhos, mas não aguentaria muito tempo. 

Fungou. "Merda de resfriado". Ok, a colega já sabia que alguém estava lá. 

"Vai embora vai embora vai embora vai embora VAI EMBORA FILHA DA PUTA você nem entrou em cabine nenhuma, eu tô te ouvindo daqui, tá fazendo o que no banheiro esse tempo todo? Affe, será que ela entrou aqui pra chorar? Pelo amor de Deus, que hora errada pra vir aqui chorar, colega..."

Três minutos. Talvez menos. Foi o tempo que alguém ficou do lado de fora. Mas, pra Beth, podiam muito bem ter sido cinquenta. 

Ouviu a porta abrir e bater na sequência. 

Ela teria esperado um pouquinho, só pra se certificar de que estava mesmo sozinha. 

Mas ela não tinha mais tempo nem pra pensar, então...

Foda-se.