quarta-feira, 29 de outubro de 2014

A nora

- Vai ali na cozinha e traz os pratos pra mim? Os azuis.

Olga organizava a mesa do almoço de domingo quando recebeu a ligação do filho confirmando sua presença.

- O Carlinhos vem com a esposa.

E a presença da esposa.

Olga odiava a esposa do filho.

É claro que ela não falava isso pra ninguém, mas não é como se disfarçasse muito bem.

Ela entendia de etiqueta, sabia todos os garfos corretos e as taças que usar em cada momento, mas não sabia esconder quando algo a desagradava.

Desde a primeira vez em que a menina entrou em sua casa, com aquele cabelo colorido e todas aquelas tatuagens, Olga sabia que o filho só podia querer puni-la por reclamar de todas as namoradas anteriores.

A menina não tinha nenhum apreço por regra alguma, de etiqueta ou de qualquer outro tipo. Não fazia questão de passar nenhum feriado religioso ao lado da família, tinha vezes que, inclusive, insistia em viajar, só pra passar a data bem longe de todo mundo.

Não era batizada.

Não fez primeira comunhão.

É claro que não quis casar na igreja. Nem vestir branco.

"Vamos fazer só um jantarzinho? Pra comemorar com a família?"

Não, eles preferiram que o dinheiro virasse uma viagem. Certeza que a ideia tinha sido dela, uma coisa tão anarquista como essa jamais teria vindo de Carlinhos, menino bonzinho que sempre foi.

Até começar a namorar com ela. Em pouco tempo já estava ele com as tatuagens, roupas esquisitas e até brincos.

Onde já se viu homem de brincos?

Quando a prima do marido se casou, com tudo dentro dos conformes, diga-se de passagem, é claro que ela teve que fazer alguma esquisitice e apareceu de calça.

Podia ter ido de vestido, como todas as meninas, mas parece que tem alergia a saia, só isso explicaria.

Pelo menos não botou uma melancia na cabeça, Olga sempre lembrava disso pra se acalmar.

- Eles já devem estar chegando, separa lá aquela bebida esquisita que eles gostam.

Eles. Eles. Eles nada, coisa daquela doida, provavelmente de quanto viajou pra Tailândia. Quem vai pra Tailândia, com tanta cidade na Europa pra conhecer? O que se compra na Tailândia, pelo amor de Deus?

Tanta menina normal pro Carlinhos casar e ele tinha que escolher uma que fica enfurnada em computadores programando sabe-se lá o que até tantas horas.

Não que ela conversasse sobre isso com o filho, mas todos suspeitavam até que ele tinha o menor salário da casa.

Só assim pra ela ser tão independente, tão despreocupada com a opinião dele antes de fazer as coisas.

E olha que ela nem estava falando só da decoração da casa, ou do que fazer pro jantar, mas de viagens mesmo e de mais um tanto de coisas que ela simplesmente avisava o coitado que já tinha decidido fazer.

- Oi, Mãe. Vou cumprimentar todo mundo lá dentro.

- Oi, Olga. Que lindo, tá tudo lindo, aliás, como sempre. Você sempre faz as coisas com tanto bom gosto. Precisa de alguma ajuda, falta alguma coisa?

- Não, imagina. Daqui a pouco vamos servir o almoço. Pode esperar lá dentro com todo mundo.

Ainda por cima era sonsa a infeliz. Olga tinha certeza de que ela só fazia essas coisas pra impressionar o marido, fazer média mesmo, não era possível.

E estava mais magra. De novo. 35 anos e nada de filhos. Até quando ela pretendia insistir nessa palhaçada de que não precisava ter filhos pra ser feliz? Já estava casada há 6 anos e nada de filhos. Nada de netos!

Garota egoísta.

Olga odiava a esposa do filho.

Por que aquela garota tinha que ser assim?

- Onde estão os pratos azuis?

quarta-feira, 6 de agosto de 2014

Decoração

- Amor, tava aqui pensando. A gente bem podia pendurar uns quadros, né?

- Tipo agora?

- Sim, agora.

- Que quadros?

- Aqueles pequenininhos que a minha irmã me deu, dos Beatles.

- Aham. Tá. Em que ordem você quer pendurar?

- John, Paul, George, Ringo.

- Sério?

- Sim, por que? Você penduraria diferente?

- Qual a ordem do Abbey Road?

- Sério?

- Anda, pesquisa.

- John na frente, Ringo, Paul, George. Mas se for assim eu prefiro a ordem do Sgt. Pepper. Gente!!!

- Que?

- É a mesma ordem. Só que da esquerda pra direita. Será que é sempre essa ordem?

- Eu não vou ficar conferindo todas as capas de disco agora.

- Tá, mas eu não quero a ordem do Abbey Road. As pessoas vão chegar aqui e pensar que é o nosso disco favorito.

- Mas é o meu disco favorito, Diana.

- Você não mora sozinho, Paulo.

- Tanto faz, não é como se a gente recebesse visita mesmo.

- Como é que a gente vai receber visita com essa casa? Se pelo menos tivesse uns quadros na parede...

- Tá, entendi. Vamos pendurar essa merda. Em linha? Ou tipo dois em cima, dois embaixo?

- Reto eu não acho boa ideia.

- Por que?

- Porque você não consegue colocar nada alinhado com nada.

- HEIN?

- Você realmente quer voltar à discussão da televisão?

- O que você sugere, então, Diana?

- Pendurar tudo meio loucão e a gente finge que é estilo. Um pra cá, outro pra cimão, outro bem pra baixo e assim vai.

- Loucão?

- Sim, mas equidistante.

- Então não é loucão.

- Mede, Paulo. Toma prego e martelo.

- Aqui?

- Pra baixo só meio milímetro.

- MEIO milímetro?

- Aí.

Martela martela martela martela.

- Ficou bom?

- Ai, que lindo. A gente tem quadros na parede. Amei. Agora outro.

- Aqui?

- Mais pra esquerda. Um pouco mais. Um pooooo... AÍ! Só mais pra baixo um dedo. AÍ!

- Posso martelar?

- Aham.

Martela martela martela martela.

- Gente, que emoção! Dois quadros.

- Vamos logo, Diana. Eu quero ver o jogo.

- Aff. Tá.

Martela martela martela martela martela martela martela martela.

- Pronto, né?

- Sabe o que eu pensei, amor? Que a gente podia aproveitar e pendurar aqueles seus quadros.

- Quais?

- Os que eu te dei de aniversário de namoro 2 anos atrás.

- Sutil, Diana. Sutil.

- Eu me esforço.

- Tá, pega lá os quadros.

- Já estão aqui.

- Aposto que você tem uma sugestão loucona de como pendurar, né?

- Na verdade, eu pensei que a gente pode encaixar aqui entre esse e esse e o outro bem aqui, ó.

- Hmmm...

- Que foi? Não?

- Não. Pior que ficou bom. Gostei. Tem um conceito.

- Claro que tem um conceito. Eu sou toda conceito. Conceito puro.

- Menos. Dá outro prego.

Martela martela martela martela martela martela martela martela.

- Gente! Que coisa LINDA!

- Tá bom? Gostou? Posso ver o jogo?

- Pode. Deixa só eu tirar... uma... foto... pera... tô postando no Instagram. Pronto! Lindo. Quer uma cerveja, amor?

- Boa. Deixa eu até curtir sua foto, né, senão já viu. Olha! Minha mãe comentou. Quer visitar, ver a decoração de perto.

- Hmmm...

- Você que disse que a gente poderia receber visitas. Minha mãe é visita, né?

- Sabe, a gente podia primeiro botar aquela prateleira, né? Se ela vier aqui agora vai ficar reparando que a gente tem pouca coisa, vai achar que a gente é pobre, tá passando necessidade, que você devia ter ficado na casa dela e...

- Respira, Diana.

- Hum.

- Que?

- Acabei de notar que essa ordem tá parecendo com a capa do Revolver.

- E?

- Eu tenho péssimas memórias desse disco.

- Quer que eu desconverse?

- Por favorzinho?

- Posso deixar os quadros assim?

- Aham.

- Tá. Pega a cerveja?

- Te amo.


segunda-feira, 2 de junho de 2014

O cão

Eram 19h. André nem precisava olhar no relógio pra saber que eram 19h. Todo dia, naquele mesmo horário, religiosamente, era possível ouvir ao longe os latidos de um cachorro.

"O dono deve chegar em casa nesse horário",  ele sempre pensava.

Pois não eram 19h, mas 17:45.

- Ow, Jefferson! O cachorro já tá latindo! São nem 18h, cara...

- Aposto que o cara voltou pra casa numas de dar um Fla x Flu na mulher. Quer apostar quanto que ela tá botando chifre nele?

- Você viaja, hein?

- Beleza. Um dia a gente descobre onde é que esse cachorro late e descobre se eu não tô certo.

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Dona Zuleide era casada com seu Ayrton há quase 40 anos. Eles se conheceram no colégio e casaram assim que ele se alistou no exército. Tiveram 2 filhos, Paulo e Débora. Ele morava no Canadá, ela deu a eles o único neto, João.

Dona Zuleide fazia quentinhas pra fora, mas queria mesmo era ter estudado pra ser professora.

- Você já arrumou um marido, Zuleide. Vai fazer faculdade pra que?

Por quase 40 anos ela foi a esposa, a mãe e a avó. Mas nunca conseguiu ser a Zuleide.

- Mãe, arruma as coisas que eu te arrumo alguma coisa aqui no Canadá. Larga o pai, mãe. Faz tempo que tu não é feliz. Eu sei que tu ficou por nossa causa, mas eu e a mana já tamos grandes, ela tá até casada, com filho, tem nem porque tu ficar aí pra cuidar do pai.

Seu Ayrton nunca deixou faltar o pão na mesa, mas também nunca faltou um rabo de saia fora de casa. Era do tipo respeitador, mas só da porta pra dentro.

Da porta pra fora eram outros 500.

Dona Zuleide sempre soube.

- Casamento é assim, Zuleide. Você sacrifica algumas coisas pra ganhar outras. Pelo menos tu tem casa, teus filhos nunca passaram fome, estudaram em colégio bom. E vamos conversar que o Ayrton nunca te bateu, né? E ele é homem, é normal dar essas puladinhas de cerca.

O problema não eram as puladinhas de cerca. É que ele sempre teve tudo que ele quis e ela deixou tanta coisa de lado pra fazer aquela família feliz.

Ela só queria ser professora...

- Eu vou, meu filho. Deixa só eu aprender inglês...

Então Dona Zuleide conheceu Jorge, um rapaz da vizinhança. Jorge dava aulas de inglês num curso ali pertinho, mas era nas aulas particulares que ele conseguia uma graninha melhor pra poupança do casamento.

Maria Alice, sua noiva, era moça de interior, sempre sonhou com uma festa bonita, cheia dos primos, tios, amigos e pompa que ela via nas novelas e filmes. Jorge queria que ela tivesse tudo isso, mas o salário no curso nunca seria suficiente pra pagar pela festa.

Foi um amigo do vizinho do porteiro do curso que comentou com Dona Zuleide que Jorge dava aulas em casa e o mesmo amigo fez com que o vizinho contasse pro porteiro que ele sabia de alguém que precisava de um professor.

Dona Zuleide não tinha o dinheiro pra pagar pelas aulas, mas podia ensiná-lo a cozinhar e garantir a quentinha do almoço enquanto ele fosse seu professor.

E então, todas as terças e quintas dali pra frente lá estava ela, cada vez mais longe dali.

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Fazia 5 anos que Júlio tinha largado seu emprego de contador pra seguir o seu sonho: adestrar cachorros.

A vizinhança onde morava tinha os cãezinhos mais educados de toda a região e ele se orgulhava muito disso.

Orgulhava-se mais ainda do seu cachorro, Thor.

- Ele não late, né Júlio? - Perguntou certa vez sua vizinha, dona Zuleide.

- Late, claro que late, mas quase sempre só com o meu comando.

- Será que você poderia me fazer um pequeno favor?

- Claro, dona Zuleide, qualquer coisa pela senhora.

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- Quem é o rapaz que tá frequentando tua casa, Ayrton? 

- Que rapaz, Osvaldo? 

- Um rapaz, novo, alto, pintosão, vem aí toda terça e quinta no meio da tarde. 

- E eu sei lá do que você tá falando, Osvaldo? Não tô fazendo obra em casa nem nada, não tem porque ter um rapaz frequentando minha casa. 

- É... De repente eu me enganei. Sei lá. Achei que fosse na tua casa. De repente não é. Mande um abraço pra Zuleide. 

- É, você deve ter se enganado sim. Mas pode deixar que eu mando um abraço pra ela, pode deixar. 

Aquela conversa foi suficiente pra que Ayrton ficasse com a pulga atrás da orelha. Quem era o rapaz? Que rapaz era esse e o que ele estava fazendo na casa dele enquanto ele estava fora? 

Ele nunca foi o marido exemplar, ele sabia bem disso, mas Zuleide não sabia. Sempre teve muito cuidado pra esconder bem suas coisas, o que acontecia fora de casa não tinha nada a ver com ela. 

Ela era sua esposa, mãe dos filhos dele, não era como as outras. As outras eram as outras, eram só diversão. Ela era coisa séria. 

Mas talvez ele não tivesse sido tão discreto assim. E, se ela soubesse, ela podia estar querendo se vingar. 

Será? Será que Zuleide seria capaz de se vingar? Pior, seria ela capaz de traí-lo? E com um garoto mais jovem, ainda por cima? 

Não, claro que não. 

Por uma semana Ayrton chegou em casa pra encontrar sua janta pronta, o pijama e os chinelos separados, como sempre, mas não conseguia parar de pensar no tal homem que Zuleide estaria recebendo em casa. 

Na casa dele, ainda por cima! 

Pelo menos ele teve a cortesia de fazer tudo fora dali, afinal ele respeitava aquele casamento.

Até que ele não aguentou mais. 

- Seu José? Eu posso falar com o senhor? 

- Claro, Ayrton, entre. Puxe uma cadeira. 

- Obrigado. O senhor sabe que eu não sou de faltar, não é mesmo? Nem de sair cedo, aliás, eu chego cedo! E vou embora sempre depois do horário. E eu não estou reclamando, de jeito nenhum, é que eu preciso ir embora um pouco mais cedo hoje, porque...

- Mas é claro, Ayrton! Tá tudo bem com você? Eu posso te ajudar em alguma coisa? 

- Não, não, tá tudo em, é que eu só preciso resolver um probleminha em casa, não é nada demais, é só um probleminha. 

- Bom, se você precisar de alguma coisa é só você me dizer. Qualquer coisa, você me diga! 

- Muito obrigado, muito obrigado mesmo, seu José. 

Ayrton pegou um táxi e voou pra casa. Era bem naquele horário que Osvaldo tinha comentado que o safado estava lá. Devia estar lá agora, fazendo sabe-se lá o que com sua mulher, desgraçado. 

- Toma, tira 20 aqui, fica com o troco. 

17:45, rapidinho. Com certeza ele ia pegar o infeliz com a mão na massa. 

- Opa, boa tarde seu Ayrton. Thor, shh. Thor! Para de latir, Thor. 

- Boa tarde, Júlio. Você me desculpa, eu não tô podendo conversar. Seu cachorro tá agitado, né?

- É, eu não sei o que tá acontecendo com ele. Ele não é de ficar assim. THOR! SHH! 

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- Mas esse cachorro do vizinho hoje tá nervoso, né? 

- Pega as coisas, Jorge, vem, deve ser meu marido. 

- Como assim seu marido, dona Zuleide? 

- Demorou até pra ele desconfiar. Algum fofoqueiro deve ter contado que você tava vindo aqui...

- E a senhora sabe disso pelo cachorro? 

- Digamos que eu tenha um acordo com o vizinho, eu te explico outro dia, agora sai pela porta dos fundos. 

- Tá, a gente continua outro dia! 

- Sim, sim... Tchau, obrigada! 

- Zuleide? Zuleide? 

- Aqui, Ayrton, tô na cozinha. Chegou cedo, né? Tá tudo bem? 

- Tá, tá tudo bem. Tá sozinha? Ouvi você conversando...

- Tava no telefone com o Paulinho, ele acabou de desligar. 

- Ah... Que cheiro bom aqui, né? Tá cozinhando? 

- Tô, tô sim. Tava preparando uma surpresa pra você. 

- Ah, é? E é o que? 

- Coffee cake. 

- Ó que chique. E o que é isso?

- É tipo bolo normal, mas é em inglês. 

- E desde quando você fala inglês, mulher? 

- Desde nunca, falo inglês nada, só faço bolo. Quer? 

- Eu quero. Tem café? 

- Eu passo agora pra você. Quer? 

- Quero. Vou só dar uma olhadinha na casa, eu juro que ouvi um barulho esquisito... 

- Deve ser só o cachorro do vizinho, mas vai lá. Vou fazer teu café e cortar o bolo. 

- É... deve ser. Cachorro doido...




domingo, 11 de maio de 2014

Disse me disse

- Ah lá aquele cara sendo babaca de novo.

- Aham

- Sério, não sei como esse povo aguenta ser amigo dele, as besteiras que ele fala.

- Aham.

- Olha aqui, olha!

- Não, cara. Eu tô tentando trabalhar.

- Porra, você não pode olhar um instante? Olha o que ele disse!

- Cara, foda-se o que ele disse. E foda-se o que você acha, eu tô tentando trabalhar.

- Ui, nossa, ele tá tentando trabalhar.

- Beleza, deixa eu ver.

- Aqui.

- Legal, eu concordo com ele.

- Como assim?

- Olha, eu tava querendo evitar essa conversa, mas lá vai. Você conhece esse cara?

- Nem quero.

- Por que?

- Porra, as paradas que nego fala dele... Quero nem conhecer. É o maior mau caráter.

- Sério? E você sabe disso só pelo que os outros falam dele?

- Pô, precisa mais?

- Sei lá, você faz o que da vida mesmo?

- Vai se fuder, cara, você sabe que eu sou jornalista, que nem você.

- Ah, tá. Só queria checar se você tinha esquecido disso.

- Não entendi.

- Se alguém te disser agora que tem uma bomba no vão do elevador do prédio, você vai checar pra ver qual é ou você vai escrever uma matéria sobre isso e apresentar correndo pro seu editor?

- Vou checar, né? Tá me estranhando?

- E por que você não tem esse mesmo cuidado quando vai falar de um cara que você nem conhece?

- Pô, tô falando com você aqui, você é meu broder e tal.

- Para, cara. Eu já vi você falando do cara pra quem quisesse ouvir, em mesa de bar, Twitter, Facebook, você nem se preocupa em averiguar as paradas.

- Qual é a tua, hein Carlos?

- A minha, André, é que eu conheço o cara e eu nem entro nesse mérito. Você nunca sequer me viu defender o cara quando você enche a boca pra falar que ele é isso, fez aquilo, um bando de coisa bem séria pra você falar por aí sem ter um pingo de prova, sabe? E eu fico de boa, porque eu não quero entrar nessa discussão, nesse mérito. Mas eu tomaria cuidado se eu fosse você.

- Isso é uma ameaça?

- De jeito nenhum, não sou desse tipo.

- Quer dizer então que você conhece esse bosta?

- Conheço, André. E conheço a família dele, a mulher dele, os filhos dele.

- Sério que alguém casou com ele? E teve filhos com ele?

- Você não aprende, né?

- Sei lá, cara, as histórias são foda.

- História da tua mulher?

- Pô, minha ex.

- Sério?

- É. Mas nem quero falar sobre isso.

- Que bom, nem eu. Não sabia que você era desse tipo.

- Que tipo?

- Que odeia por tabela. E relativiza as coisas com as quais você deveria ser responsável.

- Que pesado, cara.

- Te garanto que você já falou coisa bem mais pesada do cara.

- Cara, na boa, tu conheceu a ex-namorada dele?

- Você conheceu?

- Não, mas minha ex era amiga dela e vários amigos conhecem ela.

- Eu conheci a garota sim. E posso te falar? Nunca gostei dela. Minha mulher, então, inventava qualquer desculpa pra não ter que ir em encontro da galera quando sabia que ela estaria lá. A Maria odiava a Patrícia com todas as forças. Odeia ainda, na real.

- Como assim, cara?

- Pois é, essa é a diferença entre nós dois. Eu não vou te falar nada do que eu sei. Ou melhor, nada do que eu ouvi. Sabe por que? Porque eu não tenho provas. E hoje ela tá lá naquela emissora, apresentando o tempo e eu não quero que chegue coisa lá que atrapalhe a Patrícia na carreira dela. Ela já deixou o cara em paz, coitado.

- Ela seria capaz de ir atrás dele? Depois de tanto tempo?

- Eu não vou falar sobre isso, André.

- Porra, você levanta a bola e corta a conversa assim?

- Eu não levantei bola nenhuma, eu só comentei que o tanto que você ouviu falar de ruim dele eu ouvi falar de ruim dela. E até já vivenciei algumas coisas, mas eu não me meto na vida dos outros. Mais ainda, eu não transformo em missão da minha vida ficar arruinando a vida dos outros.

- Qual é,  cara? E eu transformo?

- Também não disse isso, mas você tem uma aba de pesquisa de um cara que não é teu amigo e você só odeia porque sua ex um dia te disse alguma coisa.

- Nem é isso...

- Ah, é, desculpa. E alguns amigos também.

- Pô...

- De todo modo, cara, eu concordo com o que ele escreveu aí.

- É. Eu não concordo muito não. Mas tá bem escrito até.

- Você não precisa concordar com ele não. Nem comigo.

- Eu sei que não.

- Só duas coisas: Vocês iam se dar bem. E pensa aí como você ficaria se tua ex começasse a falar coisas desse tipo de você pros amigos e a história escalasse como se fosse verdade, como você ficaria.

- Ela não faria isso.

- É, ele também achava isso da Patrícia.

- Como assim a gente ia se dar bem?

- Ou não, André. Sei lá. Tô trabalhando...


sexta-feira, 11 de abril de 2014

Capítulo

Era quinta-feira. E, como em toda quinta-feira, Amanda botou o Kindle na bolsa e foi almoçar com um livro.

- Lá vem você com a concorrência aqui de novo.

- Um dia vocês ainda vão me cobrar rolha por isso, né?

- Enquanto você continuar comprando livros de verdade e consumindo no nosso café, acho que podemos te garantir o desconto. Mas não abusa!

- Prometo.

- O de sempre?

- Sim, mas hoje eu quero uma tacinha de vinho.

- Hmmm... Esse livro deve ser bom mesmo, hein?

- É sim, é um daqueles.

- Já volto.

Amanda abriu o livro e continuou de onde havia parado. Faltava pouco agora, com 95% da história já completados, ela só conseguia pensar em quanto tempo ela reencontraria o amigo.

Ela já sabia que as coisas não acabariam bem, afinal, era um livro sobre guerra.

- O rapaz da mesa 3 já se ofereceu pra pagar seu vinho.

- Não, obrigada.

- Já avisei, só repassando a informação.

Ela já estava acostumada com o incômodo que causava nas pessoas com sua insistência em sentar-se sozinha vez ou outra. Fosse pra ler, comer, beber, ou simplesmente rabiscar numa folha de guardanapo enquanto ouvia música.

Aparentemente, mulher só fica sozinha na mesa até aparecer companhia.

"Não, obrigada" - ela respondia e acenava com a cabeça, a fim de não parecer mal educada. Não que ela se importasse tanto assim com o sentimento de estranhos, mas as pessoas tendiam a se comportar de forma irritantemente insistente diante de uma grosseria.

Mesmo que merecida.

- Eu sou mais interessante que esse tablet.

- É um Kindle.

- Tudo bem. Eu sou mais interessante que esse Kindle.

- Que bom.

- Posso sentar?

- Não, eu estou lendo.

- Você pode ler depois, não pode?

- Posso. Mas eu quero ler agora.

- Você é dessas que se faz de difícil, né?

- Como você se chama?

- Joaquim.

- Prazer, Joaquim. O Carlos te agradeceu pela oferta do vinho, né?

- Quem é Carlos?

- O garçom por intermédio de quem você tentou me cantar.

- Ah, sim. Ele agradeceu sim.

- Ele disse que eu não estava interessada?

- Disse.

- Você veio até aqui mesmo assim, né?

- Sim, claro.

- Só pra eu te dizer pessoalmente o mesmo "não, obrigada" que o Carlos tinha te dito?

- Foi o que você disse, sim.

- Só estou tentando acompanhar seu raciocínio, entender a dificuldade.

- Que dificuldade?

- De compreensão.

- Minha?

- Claro, porque eu refiz o caminho todo aqui e percebi que não poderia ter sido mais fácil. Você se ofereceu e eu agradeci. Mas não.

- Que antipática você.

- Você não sabe lidar bem com rejeição, né?

- Por isso fica sozinha aqui.

- Na verdade, eu quero estar sozinha aqui. E se você tivesse aceitado minha resposta eu já teria terminado mais um capítulo.

- Beleza, você vai se arrepender. Eu sou bem melhor que essa merda de livro aí.

- Eu duvido muito. Se você é inconveniente com estranhos, imagina o que você não deve ser chato como namorado? Ou marido? Prefiro nem correr o risco.

- Vaca.

- Ok.

Joaquim nem pediu a conta ao garçom. Jogou uma nota de 50 que certamente pagaria pelos cafés que ele tomou e pelo vinho dela.

Não esperou pelo troco, tampouco planejava voltar ali.

- Ficou puto o rapaz.

- Reparei.

- Mas pelo menos deixou uma gorjeta boa. De repente a gente pode combinar um esquema, fazer isso mais vezes.

- Carlos?

- Me deixa ler?

- Me deixa ler.

Finalmente, a personagem conseguia reencontrar o amigo. Amanda começou a chorar em pleno café.

Carlos aproveitou a deixa pra renovar o estoque de guardanapos da mesa.

- Traz outra taça de vinho?

- Claro.

Mais 10 páginas pra ela saber o que aconteceu naquela maldita guerra, que fim levou a personagem, se ela morreria, sobreviveria, se alguém teria um final feliz.

Era isso que Amanda não entendia nas pessoas que sentiam pena dela, ali, desacompanhada.

Enquanto ela tivesse um livro, ela definitivamente não estaria sozinha naquela mesa.

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

Um dia ruim

- Flávia?

- Aqui.

- Aqui onde?

- Aqui. No quarto.

- O que você tá fazendo no quarto, mulher?

- Ai, Bernardo...

- E por que você tá no escuro?

- Ai, não acende a luz, merda.

- Você tá de chapéu?

- Sim.

- Maquiada?

- Sim.

- Enrolada no cobertor numa temperatura de 30 graus.

- O ar tá ligado.

- Não, não tá.

- Deve ter parado de funcionar.

- Você tá bêbada?

- Não. Talvez.

- Tá.

- Ok. Tô.

- Cara, o que você tá fazendo?

- Nesse momento, conversando com você.

- Ai, meu caralho. Estamos literais, né? O que você tava fazendo maquiada, de chapéu, embrulhada no cobertor, no escuro, com o computador no colo?

- Vendo fotos de bichinhos.

- Oi?

- De chapéu.

- Hum.

- Pois é, eu quis entrar no espírito.

- Flávia, me explica?

- Ai, é tanta coisa.

- Resume.

- Você viu aquela camiseta ridícula? Então. Eu tava falando dela, comentando como era sexista, daí o pessoal começou a falar que a gente sempre fez propaganda do Brasil desse jeito, vendeu o país assim, agora tem que pagar o preço. Eu adoro quando as pessoas mudam o foco pra desmerecer o assunto, sabe? GENTE UM PORQUINHO DA ÍNDIA COM UMA BOINA.

- Flávia!

- Desculpa. Daí deu uma merda no trabalho. E depois aconteceu uma coisa incrível. E eu queria chorar. Primeiro de chateação, depois de felicidade. Mas mulher de batom vermelho não chora.

- Que?

- É. Não chora.

- O que tem o batom vermelho?

- Ah, uns caras ridículos me cantaram por causa do batom. Ficaram fazendo comentários indecentes porque meu batom era vermelho. E um amigo disse que eu tinha que acostumar porque era assim, se quisesse usar batom vermelho tinha que aguentar chamar atenção.

- Que amigo?

- Nem é amigo, é colega.

- Quem?

- Tanto faz. Idiota.

- Eu?

- Ele, porra.

- Continua.

- Ah, já esqueci. É tanta merda, sabe? Daí eu vim pra casa. E fiz um drink. Acabou o drink. Abri uma cerveja. Acabou a cerveja. Fui jogar. Daí o jogo é daqueles que você joga online, sabe? E eu lembrei que era daqueles colaborativos. E pensa num dia merda pra depender de gente? Pois é. Desliguei o jogo. Tô vendo bichinhos no Tumblr.

- Bichinhos de chapéu.

- Ééééééé. Olha!!!!

- Um poodle de chapéu.

- SIIIIIIIIIIIM!

- Meu amor, eu posso fazer alguma coisa por você?

- Pode. Pode muito.

- Você quer um abraço? Quer ficar de conchinha? Quer um cafuné?

- Não. Traz mais cerveja?

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

Negociação

- Me ligaram hoje da academia.

- É mesmo?

- Uhum. Queriam saber por que eu não ia desde o dia 15.

- Do mês passado?

- Retrasado.

- Só agora deram por falta de você?

- Não, essa foi a terceira ligação.

- E aí?

- E aí que eu expliquei que tava muito puta com o aumento da mensalidade. E que saber que esse aumento rolaria todo ano não me animava muito, já que tudo aumenta e meu salário não aumenta proporcionalmente.

- É verdade.

- Pensa só. É academia, aluguel, TV a cabo, tudo vem com reajustinho e nada de reajustinho no que eu ganho.

- E eles?

- Ah, me perguntaram se eu consideraria voltar diante de uma proposta.

- Interessante, hein?

- Também achei na hora, daí disse ok.

- E eles te ofereceram vantagem?

- Esse é o ponto. Sim. Propuseram que eu pagasse mensalmente o equivalente ao plano anual. É um belo desconto, mas ainda assim é mais do que eu pagava.

- E?

- Tem mais. Disseram que, se eu continuasse achando caro, eles voltavam ao valor antigo.

- Bom, né?

- Pois é. Só que daí eu fiquei pensando e não me senti à vontade de aceitar. Porque eles só estão conseguindo absorver esses descontos porque o resto dos alunos tá pagando o aumento. Sabe? Me sentiria uma canalha por aceitar ser favorecida.

- Sei.

- Me fez pensar que eles nem devem precisar aumentar nada agora, eu fiz as contas, quanto somaria todos esses a mais que todo mundo tá pagando. Tá bem acima dos aumentos que eles podem ter tido de custo, sabe? É ganância. Pura e simples.

- Aham.

- Acho que vou recusar. Não me sinto bem. Mesmo. Preferia que nem tivessem me oferecido esse desconto.

- Claro.

- Tô falando sério, amor.

-  Tô impressionado.

- Com o que?

- Acho que eu nunca vi você construir um argumento tão elaborado pra justificar sua preguiça de malhar.

- Preguiça? Que absurdo! É o princípio da coisa!

- Preguiça.

- Eles estão explorando os alunos!

- Preguiça. Você sempre odiou sair pra malhar.

- Sério, não acredito no que eu tô ouvindo. Justo você, que tem falado tanto desses protestos contra os preços abusivos.

- Preguiça. Confessa.

- Eu não...

- PRE-GUI-ÇA.

- Quer saber? Vai à merda.

domingo, 16 de fevereiro de 2014

Dia de jogo

Toca o interfone.

- Oi.

- É a dona Letícia.

- Pode subir.

Som de campainha.

- E aí? Trouxe as cervejas.

- Ótimo, já tá todo mundo aí. A Duda trouxe comida.

- "Comida". Merda nenhuma, trouxe porcaria.

- Ok, a Duda trouxe porcaria. Você trouxe a cerveja. Eu tenho a tv com o futebol; Fechou.

- Cadê o Pedro, Marcela?

- Foi ver o jogo na casa dos broders dele lá.

- Ela fez uma cara arrasada, você tinha que ver. Foi só ele sair que desfez o bico.

- Hahahaha...

- Cala a boca, Duda. Não é como se eu ficasse feliz por ele ver o jogo longe de mim. Na verdade, uma parte de mim fica é puta pra caralho. A gente se conheceu vendo um jogo, agora a gente raramente faz isso junto. Ele diz que reforça a masculinidade dele ver o jogo com os caras.

- O que isso significa?

- Sei lá. Mas daí eu vejo com vocês e tá tudo bem, porque vocês são mais legais que aqueles bostas dos amigos dele, que acham que eu sou retardada só por ser mulher.

- Porra, Marcela. Qual é?

- Foi mal, Lele. Eu sei que o Kadu é um dos bostas.

- Nah, beleza. Eu entendo. Eu falo a mesma coisa, então eu coloco o Pedro no grupo dos bostas.

- 20 minutos.

- A cerveja tá gelada?

- Claro. Olha pra minha cara e me diz se eu ia trazer cerveja quente?

- Boa. E aí? Palpites pra hoje?

- Bom, se ele entrar com o time titular e os caras jogarem a mesma coisa que no último jogo, eu acho que a gente vai suar.

- Eu também. Comecei a falar sobre isso com o Pedro, mas daí ele veio com aquele papo chato de que o fulano do blog tal disse isso, que os caras no grupo do Whatsapp disseram aquilo e eu pensando "Nossa, foda-se. Não lembrava de ter convidado tanta gente pra uma mesa redonda.". Deu uma puta saudade de quando a gente trocava ideia só a gente, sabe?

- Mesma coisa com o Kadu. Tá muito cheio de especialista hoje em dia, né? E eu já odiava ter que ouvir os que ganhavam a vida, recebiam salário pra ser chatos. Imagina esses que fazem de graça?

- Olha, eu sei que vocês odeiam quando eu digo isso, mas eu fico TÃO feliz por que o Fernando odeia futebol... Beleza, eu tenho que aturar ele acordando cedaço pra ver Fórmula1 nos domingos, mas pelo menos ele não discute aquilo comigo e eu não me interesso mesmo, ou seja...

- Sério, Duda. No começo eu meio que sentia pena de você, por ter casado com um cara que não entende nem compartilha da sua paixão. Mas hoje eu dia eu acho que eu e a Marcela nos fudemos bem mais que você.

- Verdade. Vaca.

- Beijinho no ombro pra vocês.

-Alá! Apitou o juiz.

- Tomara que esse filho da puta não acabe com as minhas chances de sexo hoje. BORA TIMEEEE!!!

terça-feira, 21 de janeiro de 2014

Cena

- Kika? - A voz perguntava do lado de fora do camarim enquanto se ouvia uma batida na porta. - A repórter chegou.

- Pode mandar entrar, obrigada.

A moça loira, já em seus 40 anos, entrou estendendo a mão.

- Oi, Kika. Que prazer em finalmente te conhecer.

- O prazer é meu, Laura. Uma repórter tão renomada quanto você, o prazer é meu.

- Eu achei curioso que você tenha me requisitado nominalmente, na verdade.

- Claro. Entendo sua estranheza. É que o assunto era de extrema delicadeza e eu achei importante que fosse alguém como você a cuidar disso. Alguém talentosa, séria como você.

- Fico lisonjeada.

- Podemos? A peça começa em pouco tempo, ainda preciso me maquiar. Desculpe pedir que viesse assim em um horário tão espremido, mas minha agenda estava realmente...

- Claro, claro. Eu entendo. Vamos.

- Bom, você sabe que eu e o Cássio tivemos um longo relacionamento. Nossa história é antiga.

- E bastante pública.

- Sim. Não. Na verdade, isso é o que vocês pensam. Muita coisa ficou de fora.

- Hum?

- É. Vocês não sabem de tanto quanto vocês pensam.

- Sim?

- É muito difícil pra mim comentar sobre isso, falar abertamente, mas eu acho que é importante eu assumir, não só por mim, mas... O Cássio... Ele me bateu.

- Bateu?

- Sim.

- Não batia?

- Desculpe?

- Não, é que achei curioso o tempo verbal.

- Como?

- Você declarou como se fosse algo que aconteceu uma vez. Bateu. Não algo que talvez tivesse acontecido de forma frequente. Batia.

- Não estou te entendendo.

- Está sim. Me perdoe, Kika, mas eu já havia ouvido os boatos. Entre suas maquiadoras, cabeleireiras e outras pessoas que já trabalharam com você desde a separação. Essa história de que o Cássio talvez tivesse te batido não é novidade. Eu achava que você de repente tinha me chamado aqui hoje pra anunciar algo mais... Interessante.

- Interessante?

- Não me entenda mal. Se eu de fato achasse que essa história era real, eu seria a primeira a pular nela. Mas eu não acho que seja nem de longe verdade.

- Você acha que eu inventaria algo assim?

- Sim, eu acho. Você deve imaginar que eu acompanho sua carreira desde sempre. E é claro que isso implica em acompanhar sua vida também. Você nunca foi exatamente uma pessoa que prezou pela sua privacidade, convenhamos.

- Era só o que me faltava.

- E eu imagino que o fato de eu ser feminista e, talvez, uma das poucas repórteres que ainda é levada a sério nesse meu ramo... Bom, isso deve ter influenciado na sua escolha.

- Eu te chamei aqui porque eu te respeito, Laura. E eu gostaria que você me respeitasse também.

- Claro, e eu estou te respeitando. Estou te respeitando, inclusive, te dando a chance de não insistir nessa história. O que te levou a começar isso? Ele ter sido chamado pra assumir um núcleo na emissora? O livro que ele vai lançar? Ou o noivado?

- Do que você...

- Não se faça de tonta. Você sabe do noivado. Todo mundo sabe do noivado. Até porque a Silvia não é exatamente uma qualquer. Ela é uma jornalista econômica séria. Conhecida, respeitada. Admirável, eu diria. Artigos publicados lá fora, bonita, jovem, bem sucedida.

- Onde você quer chegar?

- Você tem o que? A mesma idade que ela? Talvez uns 6 anos a mais? E está o que? Fazendo esse espetáculo de quinta. Eu não quero parecer desrespeitosa, mas essa peça é uma porcaria. Não por ser teatro independente, é claro que não, mas por ser uma porcaria mesmo. Só isso. E não é como se estivessem chovendo convites pra você interpretar papéis maravilhosos, eu acho que isso aqui deve ter sido seu melhor papel em um bom tempo. O último foi aquele comercial de seguro. Tô errada?

- Eu vou pedir que você se retire. Eu devia ter falado com aquele outro rapaz, aquele que escreve no outro jornal.

- E ele teria escrito sua história. Porque você sabe que ele escreve qualquer coisa, mesmo que ele tenha certeza de que não passa de um boato maldoso, mas eu não. Por que não dizer que o Cássio é gay?

- Que?

- É, se você quer difamá-lo, por que não dizer que ele é gay?

- ...

- Ah, sim. No meio artístico isso não seria um choque. Ou, pelo menos, não o tipo de choque que você quer causar. Mas bater em mulheres... Isso sim. Seria um ruído terrível nesse momento dele. E ainda jogaria por terra a imagem da Silvia.

- Eu não sei do que você está falando.

- Sabe sim, Kika. Qualquer estariágio que tenha estudado você minimamente saberia que, se alguém nesse relacionamento era capaz de violência, esse alguém era você. Ele esteve do seu lado quando você teve seu problema de bebida, quando você desapareceu e disse que estava indo estudar teatro fora. Todo mundo sabe que você se internou pra cuidar da cabeça, mas ele sustentou sua história. A verdade é que foi você que saiu do relacionamento. Você achava que sua carreira deslancharia sem ele? Você tinha um plano? Me explica.

- Eu preciso me arrumar, o espetáculo vai começar daqui a pouco e eu ainda preciso me concentrar.

- Espetáculo. O espetáculo é isso aqui, esse circo que você quer armar. Sabe o que me fode, Kika? E sim, eu disse fode mesmo, já que eu não tenho tempo, não vou conter meu vocabulário. O que me fode é que eu já apanhei. E não de mentirinha, pra aparecer e pagar de coitada pro público, pra ganhar a simpatia dos outros. Eu apanhei de ter ossos quebrados e hematomas extremamente aparentes. Eu apanhei de ter de chamar meu editor pra conversar e trabalhar de casa, pra não dar as caras na redação e dar margem a conversinhas. Eu apanhei de denunciar meu ex-marido, de envolver polícia e advogado. Nem sempre eu trabalhei escrevendo sobre artistas e televisão. Você sabe quem eu sou. Se hoje eu faço isso, é porque eu escolhi. Porque eu cansei de escrever sobre o que eu escrevia. Não me subestime. E não me desrespeite.

- Você pode sair.

- Posso. Mas eu ainda quero te falar algumas coisinhas. Isso que você tá tentando fazer, é por causa de gente que nem você, mesquinha, mentirosa, inconsequente, que tem cara que espanca a esposa, os filhos, e não é enquadrado. Porque as autoridades, quem é responsável por cuidar disso, não acredita em quem denuncia. Nessa merda de sociedade, é bem fácil que as pessoas achem que as mulheres só querem prejudicar um homem de bem. E é por causa de gente que nem você, que fica inventando história, que tem tanta mulher que apanha e se sente desamparada, acha que ninguém vai acreditar nela. Você me enoja, sabe?

- SAI. DAQUI.

- Eu saio. Tô saindo. Espero que você pense bem sobre essa nossa conversa. Você não deve ter um amigo pra te dissuadir dessa idiotice, então pensa em mim como sua amiga. Foca no que restou da sua carreira. De repente você ainda tem o que salvar aqui. Sua dignidade, talvez.

- LUZIA! AJUDA A NOSSA AMIGA A ACHAR A PORTA, FAZ FAVOR? E LIGA PRAQUELE RAPAZINHO QUE ESCREVE PRO OUTRO JORNAL? COMO É O NOME DELE?

- É João Carlos, Luzia. Pera que eu te dou o número aqui. E pode deixar, Kika. Eu vou dar uma ligada pro Cássio e pra Silvia. Faço questão de escrever um especial sobre o noivado deles, sobre esse momento maravilhoso que ele tá passando, sobre esse prêmio que ela deve receber. Acho que vai ser uma matéria maravilhosa.

- Você ainda tá aqui, meu Deus?

- Não, já tô saindo. Ah, sim. Merda pra você. Muita, muita merda.

quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

Banheiro

Naquele dia, Mariana almoçou rápido e voltou logo pro escritório.

Entrou no banheiro pra lavar as mãos e escovar os dentes e percebeu que alguém estava em uma das cabines. 

Silêncio. Algumas fungadas. Chorando, talvez? 

"Deve ser a menina nova", pensou. "Todo mundo saiu pra almoçar junto, só ela foi sozinha."

Sentiu-se mal. Não conhecia a menina o suficiente nem mesmo pra perguntar se estava tudo bem. 

Lavou as mãos rápido e deixou pra escovar os dentes depois. 

Quis evitar o constrangimento para a menina, imagina sair toda inchada, nariz escorrendo, e dar de cara com alguém? 

Depois ela podia convidá-la pra um café, estender a mão, um ombro. Como quem não quer nada, é claro. 

Isso. Mas só depois. 

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Beth almoçou rápido. Na verdade, engoliu a comida. Tinha feito planos pras duas longas horas de almoço que envolviam qualquer coisa menos ser acometida por uma dor de barriga. 

Talvez fosse o remédio que estava tomando. Talvez fosse algo que tivesse comido. E, nesse caso, seriam muitos os suspeitos. 

Mas nada disso vinha ao caso. Ela precisava voltar logo pro escritório. 

Era bom, já que todo mundo tinha ido almoçar junto, então ninguém estaria lá pra ameaçar seu momento. 

Ela não era do tipo de pessoa que conseguia ir ao banheiro com testemunhas. 

"Ainda bem que eu escolhi um restaurante perto", ela pensou enquanto se apressava. 

Confirmou que o escritório estava realmente vazio e correu um pouquinho mais. Chegou ao banheiro e sentiu aquele alívio. 

Ela tinha conseguido. 

Ufa. 

Beth sentou-se no vaso e, antes mesmo que pudesse fazer qualquer coisa, ouviu a porta abrir. 

"Sério? Quem foi a filha da puta que resolveu vir antes? Todo dia elas tiram mais de duas horas de almoço. Todo dia!"

Prendeu a respiração e concentrou-se em não fazer barulhos, mas não aguentaria muito tempo. 

Fungou. "Merda de resfriado". Ok, a colega já sabia que alguém estava lá. 

"Vai embora vai embora vai embora vai embora VAI EMBORA FILHA DA PUTA você nem entrou em cabine nenhuma, eu tô te ouvindo daqui, tá fazendo o que no banheiro esse tempo todo? Affe, será que ela entrou aqui pra chorar? Pelo amor de Deus, que hora errada pra vir aqui chorar, colega..."

Três minutos. Talvez menos. Foi o tempo que alguém ficou do lado de fora. Mas, pra Beth, podiam muito bem ter sido cinquenta. 

Ouviu a porta abrir e bater na sequência. 

Ela teria esperado um pouquinho, só pra se certificar de que estava mesmo sozinha. 

Mas ela não tinha mais tempo nem pra pensar, então...

Foda-se.