segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

Redenção

Há mais de cinco anos não pisava naquela rodoviária. Completariam seis anos naquela sexta-feira, pra ser mais exata.

E, se dependesse dela, não teria pisado ali nunca mais.

Desceu do ônibus carregando uma pequena mochila, não pretendia que sua viagem se estendesse além do necessário.

Reconheceu alguns rostos assim que botou os pés na plataforma, podia sentir os olhares curiosos em cima dela. Sabia que sua partida era, mais que um mistério, a fofoca favorita da cidade.

Foi coisa de relacionamento que deu errado, era o que todos diziam. Estavam certos. Só não sabiam o quão errado.

Passou pela banca de jornal onde comprava a mesma revista todo dia 13 de cada mês. Queria aprender como apimentar o relacionamento e fazer com que o marido a visse como uma mulher desejável.

A padaria onde sempre comprava o pão fresco pro café da manhã e a cerveja gelada no fim do dia. Seu marido odiava pão velho e a cerveja no fim do dia era sagrada. Bem gelada.

A pequena clínica do bairro, onde o médico a recebia de quando em quando pra olhar hematomas e eventuais cortes. A enfermeira já tinha virado quase uma amiga, não fosse seu olhar de julgamento toda vez que entrava pela porta de cabeça baixa contando sobre o último acidente na cozinha.

Eles provavelmente nunca acreditaram em suas histórias.

Era estranho passar por cada canto da cidade de onde fugiu e lembrar-se com tantos detalhes da vida de que tentou se desvencilhar, da pessoa que ela queria tanto deixar de ser.

Finalmente, a porta azul da casa amarela. A última casa da rua Carlos, o número 12 descascado do mesmo jeito que estava quando ela bateu a porta atrás de si quase seis anos atrás.

Foi por aquela porta que ele a carregou no colo e disse que naquela casa seriam felizes. E foi na frente daquela casa em que ele a espancou, na frente de todos os vizinhos, que apenas olharam enquanto ele gritava que não admitiria sua traição.

Naquele dia ela perdeu o filho que esperava.

Ela nunca o traiu.

A vizinha da casa ao lado estava trancando a porta quando ela chegou.

- Márcia, quanto tempo.

- Seis anos. Quase.

- Acredito que tenha vindo para resolver a burocracia da casa, ela agora é sua, certo?

- Sim. Creio que sim. Você tem compradores?

- Tem um casal interessado, mas eles fizeram uma oferta abaixo do mercado.

- Venda.

- Você não quer olhar suas opções?

- Não, eu só quero me livrar dessa casa.

- Tudo bem, eu tenho os papéis pra você assinar, se puder vir comigo.

- Ele morreu, né?

- Sim, morreu de cirrose faz uma semana.

- Eu só precisava ter certeza. Os papéis. Vamos?

Agora sim. Ela estava livre.

segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

Adeus

Luisa queria que fosse um sonho e Caio não estivesse dormindo ao seu lado. Depois de tantos anos pensando naquele momento, definitivamente esse não seria o desfecho que ela teria proposto.

Em sua fantasia mais louca, eles finalmente se perceberiam loucamente apaixonador um pelo outro e se casariam. Teriam filhos. Dois. Um menino e uma menina. Ela sabia que brigariam pelos nomes, mas em algum momento concordariam em algo. Ou não.

Mas lá estava Caio e ela sabia que não se casariam. Não agora. Sequer estavam prontos para namorar, ou assumirem que se gostavam.

Caio era seu melhor amigo há tanto tempo e, ainda assim, eram incapazes de conversar de coisas sérias pessoalmente. Tudo que precisavam dizer um pro outro que fosse minimamente relevante era enviado por alguma forma de mensagem eletrônica. E ele tinha precisado dela na noite anterior.

Algo sobre coração partido. Ela, amiga incrível que era, levou seu ouvido, o ombro, os filmes favoritos dos dois e tudo que precisariam para preparar um Amnésia Nuclear, drink de escolha quando precisavam esquecer alguma coisa. Ou alguém. Ou tudo.

Pois tinha funcionado. De alguma forma, ela deletou tudo entre o último Rocky e o motivo para ela estar ali, nua, debaixo de seu edredom. Levantou uma ponta pra conferir se, sim, ele estava igualmente nu embaixo do mesmo edredom.

Em momento algum ela teve a chance de contar pra ele que estava na dúvida sobre uma proposta de emprego. Agora não estava mais. Era a coisa mais séria que já tinha precisado contar pra ele, grande demais pra mandar por qualquer mensageiro.

Decidiu deixar um bilhete.

"Caio,

Desde sempre fomos os melhores amigos que esse mundo já viu. Nunca conheci nessa vida um casal que tivesse relacionamento melhor que o nosso. Só nos faltou ser um casal. Nunca discutimos por nada sério, você sempre me entendeu e esteve do meu lado quando eu não queria que absolutamente ninguém me visse chorar ou ser fraca. E eu sempre estive lá pra te fazer perceber o quanto você era incrível.

O problema é que eu não sei mais como ser sua amiga. Porque eu te amo.

Desculpe. Não sei se essa é a melhor forma de te dizer, mas tampouco sei fazer diferente.

Percebi outro dia, enquanto você me contava sobre a Mariana, Marina, sei lá o nome dela, que eu não conseguiria mais ser seu ombro e te ver escolhendo elas, se arriscando com elas, quando eu estava ali, tão perfeita pra você, só esperando que você entendesse o que eu já tinha entendido.

Não podíamos mais ser amigos. Ou só amigos. Já éramos além.

E o que quer que tenha acontecido ontem me fez perceber que não posso mais estar perto de você.

Recebi uma proposta pra trabalhar em Londres e decidi aceitar. Ficarei um ano lá, a princípio, mas há a possibilidade de isso se estender indefinidamente.

Pensei em te contar ontem, mas você precisava de mim mais do que eu de você.

Eu te amo, mas não estou pronta pra te perder.

Então acho melhor assim.

Lu"

Ela deixou o bilhete em um lugar impossível de ser ignorado e foi embora. As malas já estavam quase todas prontas, antes de ir pra Inglaterra ela passaria uns dias na casa da irmã em Brasília. Esse detalhe ela omitiu intencionalmente. Não queria ter de vê-lo antes de ir.

Aquela carta era sua despedida.

Caio acordou e procurou Luisa na cama, com um sorriso que se estampou em seu rosto antes mesmo que ele abrisse os olhos. Ela não estava mais lá, mas ele achou a carta rapidamente.

Leu em voz baixa e apertou o papel dentro da mão enquanto disse pra si mesmo:

- Eu também te amo.