terça-feira, 25 de novembro de 2008

Não é você, sou eu...

Só podia ser brincadeira, era muita audácia do infeliz, ela pensou. Provavelmente, estava mais irritada por ter sido pega de surpresa do que pela situação em si. Embora a situação inteira fosse mesmo muito clichê.

Haviam passado o fim de semana perfeito longe da cidade, feito todas as coisas divertidas que um casal faz quando finalmente consegue contrabandear algum momento a sós, distante da dinâmica enlouquecida de uma semana normal, lotada de trabalho 30 horas por dia.

Era eu te amo pra cá, você é linda pra lá, não sei como eu pude ter tanta sorte de te encontrar acolá. Tanta doçura que poderia matar um diabético e agora lá estava ele. Sentado à sua frente, numa mesa vagabunda de bar, daqueles bem lotados, em que você mal consegue ouvir seu próprio pensamento. Palhaço. Tentando evitar que ela fizesse uma cena quando ouvisse sua covardia dita em voz alta.

- Não é você, sou eu. Eu queria tanto que as coisas não tivessem mudado pra mim, você é tão perfeita, eu não queria fazer isso, blablablabla.

Idiota. Não podia ter se dado ao trabalho de mudar ao discurso? Essa devia ser a terceira vez que usava a mesma ladainha, talvez com uma leve alteração aqui ou ali. Ela sempre achava que aquilo era desculpa para tirar férias do relacionamento, só para dar tempo de pegar uma vadia aqui ou ali. Não necessariamente alguém específico, qualquer uma serviria. Embora ela tivesse certeza de que a primeira vez tinha sido por causa da secretária da academia. Mas ela sempre dava uma chance pro verme, para o desgosto das amigas.

Era infalível, no dia seguinte ele sempre voltava, com o rabo entre as pernas. E aí ela sabia que as outras, ou as supostas outras, não significavam tanto quanto ela. Ela sabia que era especial.

- Eu acho que nós estamos nos distanciando, você querendo viajar pra Europa e tal. Mas eu já fui pra Europa. E pros EUA. Eu já vivi isso tudo, você ainda tem muito pra viver, eu não quero impedir seu crescimento, seu futuro. Você é forte, ainda tem tanta coisa pra conquistar... Você sabe que eu te amo, né gatinha?

Que ódio. Ela respirou fundo e repetiu trezentas vezes para si mesma que estava calma e que não valia a pena se abalar. Ok, ele ia mudar de idéia e tudo ia voltar ao normal. Mas será que era isso que ela queria?

Olhando praquela cara estúpida, ela mal conseguia encontrar uma razão sequer para se submeter àquilo. Ele queria outras mulheres? Então bom proveito, porque não seria ela a mosca morta que ia esperar ele se arrepender. Ela não precisava daquilo!

Ela olhou ao redor, olhou bem para ele e disse.

- Quer saber? Você tem razão. Não sou eu, é você. Você é um babaca. Um babaca sem tamanho. Um tremendo filho da puta e eu não sei por que eu perco meu tempo com você.

- Linda... Pra que essa cena? A gente tá aqui conversando civilizadamente...

- Cena? Você acha que isso é uma cena?

Ela pensou em ficar quieta, levantar da mesa e dar as costas. Deixar ele falando sozinho e ignorar toda tentativa de contato que houvesse depois daquilo. Seria mais digno. O que uma mulher de classe faria. Aí o garçom finalmente apareceu com o mate que ela já tinha pedido há uns 45 minutos, muito antes de toda aquela conversa começar... Ela olhou pro copo de gelo, o maldito copo de gelo que ela não tinha pedido. Aliás, ela tinha sido bem enfática quanto ao “sem gelo, por favor”.

Então ela olhou pra ele de novo. Engraçado como ele parecia mais idiota a cada minuto. Ela sorriu. Então levantou da mesa... E acertou um soco bem acertado no olho dele. O bar ficou instantaneamente em silêncio enquanto ela calmamente abriu o copo de mate e derramou tudo na cabeça dele.

- Acho melhor você colocar gelo nesse olho, essa merda vai ficar roxa amanhã. – Ela empurrou o copo de gelo na sua direção.

O silêncio logo foi substituído por uma salva de palmas entremeada pelos inevitáveis “o que aconteceu, você entendeu o que aconteceu?”. Ninguém entendeu, mas todo mundo gosta de uma boa confusão.

Ela pegou a bolsa e deu as costas. Sem um pingo de vergonha... Deliciosamente vingada...

sexta-feira, 21 de novembro de 2008

[Insira aqui o título deste poema]

Hoje eu te amo.

Amanhã, não te amo mais.

O amor é dessas coisas que te fazem voltar atrás.

Então eu mudo de idéia e, no outro dia, já penso que te amo demais.

Até o dia em que acordar e descobrir

Que não te amei jamais.

quarta-feira, 24 de setembro de 2008

Outro...ra

Eram 5 da manhã de domingo, ela acordou como se tivesse de trabalhar. Olhou para o lado e lá estava ele. O mesmo homem de tantos anos. Mas naquele momento ela soube que algo estava mudado. Ela soube que não mais o amava.


Pensou em tudo que havia sentido, o que havia planejado, nos beijos que não mais trocavam, nos abraços que já não tinham paixão, nos carinhos que deixaram pra trás, dos detalhes que pareciam ter perdido o sentido.


Ela olhou seu rosto plácido, ainda afundado em seu travesseiro, totalmente imerso no mais profundo sono, sem sequer imaginar tudo o que se passava pela sua cabeça.


Ela o observou intensamente e percebeu que ele ainda era o mesmo. Ele era o mesmo, mas ela não mais o amava.


Algo estava diferente, talvez fosse ela.


Mas eram 5 da manhã de domingo, ela não tinha de trabalhar.


Ela não precisava acordar.

segunda-feira, 26 de maio de 2008

O Vestido

A prima resolveu casar e só avisou em cima da hora que ela seria madrinha. Era só o que faltava, mais um casamento para ela se preocupar, escolher roupa, cabelo, maquiagem, bolsa, sapato, brinco, cordão, anel... Mas família é família, a conversa é uma outra completamente diferente.


Ainda assim, ela enrolou. Escolheu a cor e avisou. Queria o verde, que combinava com seus olhos. Verde escuro, porque seu cabelo era claro, e ela não queria ficar parecendo uma coisa pálida e esquisita nas fotos. Queria o verde escuro.


Fez vários rabiscos do vestido. Tudo que via pela internet, copiava. Abriu uma pasta na área de trabalho só para organizar as imagens, mas continuou enrolando.


Ligou para uma costureira conhecida, avisou sobre a ocasião e perguntou se ela faria o seu vestido. Mentiu, disse que tinha todo o desenho já pronto e a cor definida. Só precisava saber que tecido comprar. A costureira disse, marcou hora e sugeriu o preço. Ela combinou, mas não foi.


Mas a enrolação tinha de terminar. Faltava menos de um mês para o casamento e ela decidiu tomar vergonha na cara e tomar alguma decisão quanto ao que vestir. Estava mais do que claro que a idéia de mandar fazer tinha ido por água abaixo, então pesquisou lojas de festas e pensou em alugar.


Foi, sem esperanças, a um lugar conhecido por ter várias lojas no mesmo prédio, morrendo de medo de que todas as peças tivessem lantejoulas, strass e afins. Tinha pavor de tecidos muito brilhantes, modelos muito berrantes e vestidos muito esvoaçantes.


Começou pelo andar mais baixo, pretendia ir subindo conforme fosse quebrando a cara. A vendedora não ajudou logo de início, dizendo que seu tamanho possivelmente era um 40. Que bela tonta, pensou. Não imaginava como poderia vestir 40 ali se, em todas as lojas, ela nunca passava do P ou do 38. Mas continuou ignorando suas sugestões e procurando pelas araras.


E lá estava ele. O vestido. Tomara que caia, verde escuro. Dependendo de onde a luz batia, alguns reflexos pretos marcavam o movimento do tecido. Era perfeito, com sua saia rodada e sua cintura marcada. Era 40, mas ela experimentou assim mesmo.


Melhor do que estar certa é provar que os outros estão errados. Especialmente quando os outros te chamaram de gorda. Sobrou um palmo de vestido, mas antes largo que apertado. Pelo menos poderia apertar.


Era isso. A primeira loja, o primeiro vestido. O único vestido. Meses de enrolação resolvidos em poucos minutos. Missão cumprida.


E lá foi ela ligar para todo mundo, para contar como era lindo o vestido que a fez sentir-se como uma princesa no tapete vermelho.

terça-feira, 8 de abril de 2008

Segunda-feira

Era mais um dia normal, em que eles acordavam juntos depois de terem dormido juntos. Mais um dos seis dias da semana em que ficavam sob o mesmo teto. Como sempre, ele pulou da cama enquanto ela enrolou um pouco mais, os clássicos cinco minutinhos a mais.


Abriu os olhos com um beijo carinhoso na bochecha, para ver que ele havia lhe trazido um copo de suco de soja. Ele insistia em fazer essa graça. Era só um copo de suco, mas gostava de dizer que sempre lhe trazia café na cama.


Ela levantou-se, resmunguenta, para lavar o rosto e começar a se arrumar. Olhos ainda semi-fechados, descabelada, tropeçando em tudo. Ele já quase pronto, a interrompe em seu trajeto, só para abraçá-la e roubar mais um beijo.


Enquanto ela se empenha em parecer menos cansada, ele a observa da porta do banheiro, já todo paramentado para mais um dia de trabalho. Ela escova os dentes e passa maquiagem sobre a pele limpa. Nada demais, mas não sai de casa sem um leve corretivo nas olheiras, rímel e blush. O gloss ela só passa depois que se despedem, porque sabe que ele não suporta a textura melada. Ou chegar no escritório com a boca brilhando...


Eles saem de casa, checando se tudo está desligado, devidamente apagado e as portas todas fechadas. Trancam a porta da rua e descem as escadas. Precisam aproveitar cada passo do breve caminho que andam juntos.


Depois das escadas, a garagem.


Depois da garagem, a rampa que leva ao portão, que leva à rua.


Do portão, praticamente contam os passos até a esquina, até a banca de jornal que marca o momento em que trocam o último beijo da manhã. Se olham por alguns instantes e então se abraçam.


Ele segue pra lá, ela pra cá. Cada um para um lado, rumo àquelas horas do dia em que precisam ficar separados.


Mais alguns passos e ambos param no lugar. Olham pra trás. Um beijinho jogado no ar, uma breve piscada, “eu te amos” murmurados dos dois lados.


Agora sim podem ir embora.

sábado, 29 de março de 2008

Tempo

Elas eram melhores amigas, mas como em todo relacionamento, um belo dia, a lua-de-mel acabou. E ela começou a perceber que, há muito tempo, a amiga não ficava feliz por ela, ou sequer tinha algo legal, positivo para falar.


Quando ela trocou de óculos por um par tão perfeito que, para pagar por ele, teve de dividir em 6 prestações, a amiga disse apenas que não havia gostado do desenho. Ficava estranho em seu rosto, fino demais.


Quando ela decidiu remodelar as sobrancelhas com uma moça super recomendada, que usava uma técnica mega alternativa, a amiga disse que tinha deixado os olhos dela pequenos e o nariz imenso. E desde quando ela tinha aquela pinta entre os olhos? De repente os pelos estavam escondendo...


Quando ela criou coragem para cortar os cabelos que já quase batiam na cintura e lançar mão de um corte bem moderno, bem jovem e repicado, a amiga alertou que quase não tinha sobrado cabelo pra cortar.


Quando elas foram jantar porque ela estava super chateada com a partida do seu quase namorado para estudar o comportamento de uma tribo sei-lá-qual sabe-se-lá-onde, enquanto ela chorava sem saber se algum dia alguém ia gostar dela o suficiente para colocá-la acima de tudo, a amiga a interrompeu dizendo que talvez ela não devesse ter cortado o cabelo. E ter comprado lentes, em vez daquele novo par de óculos. E talvez aquele desenho de sobrancelha não tivesse ajudado também... Aliás... Ela tinha alguma coisa entre os dentes?


Quando ela arrumou um namorado, ligou para a amiga toda feliz, avisando que tinha mandado fotos do feriado que tinham passado juntos, para que ela visse quem era, que ela estava doida para apresentá-los. E a amiga disse que ele não era lá muito bonito.


Certo dia, enquanto jantavam num restaurante que ela estava doida pra conhecer e a amiga disse que a comida era meio sem sal, ela disse:


- Te contei que vou tirar férias?


- Mas você saiu de férias do trabalho não tem nem 2 meses, você até viajou com o Túlio.


- É Júlio, mas eu não vou sair de férias pelo trabalho. Eu preciso de férias de você!


E ela tirou a sua parte da conta da carteira, mais uma bela gorjeta para o garçom. Deixou a amiga ali sozinha e, pelo que sei, elas não se falaram por um bom tempo.

quarta-feira, 19 de março de 2008

Convivência...

Num momento de carência, ela pergunta ao namorado...

- Amor, por que você nunca me surpreende?

- Como assim, gatinha?

- Ah, sei lá... O namorado da Paula outro dia fez um jantar pra ela. Ela me contou quando a gente foi ao shopping e eu achei tão romântico...

- Eu adoraria cozinhar pra você, minha linda. Mas é difícil acertar. Uma das primeiras coisas que você me deu foi material de leitura pro nosso relacionamento dar certo. “Coisas que eu não como e a lista das raras coisas que eu realmente gosto de comer”. Lembra?

- Hmm...

- Lasanha Sadia...

- Sem presunto...

- Miojo da Maggi...

- Mas sem aquele caldinho... E só com metade do tempero...

- Só come lanche do Bob’s...

- Agora é McDonald’s...

- Tá vendo?? Agora já vou ter de editar a lista...

- Ah...

- Você quer que eu faça um jantar pra você? Eu pego agora o miojo no armário, mas acho que a lasanha precisa descongelar um instante antes de tirar o presunto... O McDonald’s tem delivery, eu posso ligar...

- Esquece.

- Deixa de ser boba, eu te amo... Deita aqui do meu lado, vem...

- Chega pra lá...

Ele começa a se ajeitar na cama...

- Não, chega pro outro lado. Você sabe que eu não deito do lado da parede.

- Sim, tem isso também... E você sempre fica do meu lado esquerdo quando a gente anda na rua...

- Amor...


- Fala, gatinha...

- Isso te incomoda?

- O que?

- Minhas manias...

- Não, linda. Eu achava você meio esquisita no começo, mas acho que isso te faz especial no fim das contas.

- Ai, que lindo, amor...

- Vem cá, me dá um abraço...

- Tá...

Ele se aproxima para dar um beijo nela. Um beijinho delicado na ponta do nariz...

- Ai, amooor!!! Ecaaaa... Agora eu vou ficar com cheiro de cuspe no nariiiiz... Creeedooo!!!!!!!!

Ela levanta correndo pra lavar o rosto. Ele aumenta o volume da TV e dá uma risada discreta, o Fluminense está jogando.

segunda-feira, 10 de março de 2008

A próxima

Tentar pegar o buquê da noiva em um casamento é um esporte definitivamente radical. E o grau de dificuldade aumenta exponencialmente quando o terreno em que a mulherada se amontoa é fofo, como um gramado.


Equilibrar-se de salto fino na terra macia é tarefa para artistas do Cirque du Soleil. Mais ainda quando várias fêmeas enlouquecidas pela possibilidade de serem a próxima a casar se movimentam do seu lado como jogadoras de futebol americano. Praticamente levantando as saias para aumentar a mobilidade, alongando para prevenir lesões, dando aquela cuspidinha na mão para garantir a pegada. Uma boa estalada no pescoço para ter certeza de que estão preparadas. Pode mandar, noivinha... Pode mandar...


E eu ali parada, minha primeira vez. Sabendo que qualquer movimento brusco resultaria tão somente em um estabaco muito feio, com possível exposição da calcinha. Nem pensar...


A noiva manobra as moçoilas e logo se percebe que há uma favorita para o prêmio. A madrinha, melhor amiga. Imagina que lindo se ela pegar o buquê... Praticamente poético, definitivamente romântico. E ela seria a próxima, e as duas seriam esposas e todos os tralalalas. Sem problemas, eu não pretendia me mexer mesmo...


O cerimonialista vem, mais parecendo aqueles assistentes de palco de programa de auditório, instruindo a multidão sobre como proceder. Contem 1, 2, 3 e a noiva joga o buquê!


1... 2... 3!!!! Aha! Vocês pensaram que ela ia jogar, né? Mas a primeira é sempre de brincadeirinha...


1... 2... 3!!! Agora sim, ela joga o bendito. Como todos sabem, a cena então fica em câmera lenta.


O buquê vem vindo exatamente na direção prevista. As mulheres começam a se movimentar. Esticam os braços. As mãos ansiosas para tocá-lo. O buquê encobre a madrinha e cai perfeitamente... Nas minhas mãos!


A velocidade volta ao normal e duas velhas ensandecidas voam em direção ao buquê, derrubando-o das minhas mãos com um golpe de karate de solteirona que vai ficar pra titia. Flores pra todos os lados, mais mulheres enlouquecidas voando para recolher os restos do buquê que obviamente já era meu.


Então uma das minhas amigas levanta o troféu, mas o entrega novamente a mim. Todos viram a cena perfeita de cinema que o conduziu às minhas mãos. Até o momento de desespero extremo das senhoras não casadas.


Foto com a noiva. Eu e a amiga que resgatou o buquê do chão. E o dito cujo, claro.


Volto eu para o restaurante com o que restou do que minutos antes era, ainda, um belo montinho de flores. Só para ouvir o cerimonialista dizer que eu tinha a mão furada.


Então eu peguei o que havia sobrado das flores e enfiei na boca dele, pra aprender a não mexer com a pessoa errada...


Mentira... Fui direto pra minha mesa tentar conseguir uma água. Eu precisava repor as energias...

sexta-feira, 29 de fevereiro de 2008

De boas ações...

Depois de sabe-se lá quantos Ice Teas, lá está ela, pronta para fazer a famosa dança do xixi até o banheiro. Pede instruções e procura-o como quem sai em busca do Santo Graal.


Segue em frente, vira à direita, à direita de novo, aí vai ter uma portinha preta, na parede preta. Legal... A maçaneta deve ser preta também, porque ela não acha a porra da porta nem... Ah, deve ser aquilo lá... Clanc! Bosta de porta trancada...


Tranqüilo, ela pode esperar. Não mais do que alguns instantes, mas ela pode esperar. Sua amiga aparece e cochicha em seu ouvido que precisa entrar antes, acidente iminente. Mais alguns segundos e ela corre o risco de ficar com a saia bege toda manchada de vermelho. Ok, ela deixa a amiga passar a frente, mas que seja rápido, senão seria ela com as calças todas encharcadas.


Ai, mas como demora a infeliz no banheiro... E demora em banheiro público só pode significar uma coisa... Tá, podem ser outras também. Mas como a lenda da mesa de pingue-pongue no banheiro feminino não passa mesmo de lenda, ou a cachorra do outro lado da porta está ajeitando a maquiagem bêbada (e nesse caso o perdão só vem diante de uma mulher alcoolizada que mais pareça fugitiva de um circo), ou ela está realmente trabalhando num número dois... E ninguém quer precisar entrar correndo dentro de tais circunstâncias. Em lugar nenhum!

A garota finalmente sai. De cabeça baixa e sem fazer contato visual, o que só fortalece a segunda teoria. E o caso deve estar tão grave, que ela ainda faz de tudo para não ser reconhecida. Ainda bem que ela passou a vez pra amiga... Coitada, mas...


Ela entra com aquela cara de quem sabe estar indo em uma missão kamikaze. Mas precisava ir, por motivo de forças maiores... Lança um último olhar e tranca a porta.


E a dança do xixi, continuando frenética do lado de fora. A fila crescendo terrivelmente atrás dela, todas parecendo igualmente tensas com a perspectiva de ficarem mais tempo do que consigam segurar naquela maldita espera...


Como se a situação não fosse desconfortável o suficiente, uma menina se aproxima falando bem alto, um copo de algum drink de cheiro forte em uma das mãos.


- Gente... Essa porta tá fechada há mais de meia hora, a menina se trancou aí dentro e eu acho que ela não vai sair tão cedo, nem imagino o que ela esteja fazendo aí dentro...


- Ela já saiu, outra pessoa entrou...


- Noooossa... Eu tava dali do balcão só prestando atenção nessa porta, esperando ela abrir e nada... E eu nem tirei o olha dela!! Ainda bem que ela saiu, né... Porque eu não entendo como é que alguém demora tanto tempo no banheiro...


- É... Mas agora a rotatividade vai ser bem maior, te garanto... Eu, pelo menos, não pretendo ficar muito tempo dentro do banheiro mesmo...


- É, eu também sou rápida, sabe, porque eu entro...


A porta abriu. Sua amiga saiu com a cara aliviada de quem havia conseguido evitar uma catástrofe bem a tempo. E ainda a salvou daquela conversa... Bem a tempo...

terça-feira, 19 de fevereiro de 2008

Quem ouve o que quer...

Escutar atrás das portas é feio, ele sabia disso. Mas certas coisas parecem que pedem para ser escutadas. Pois lá estava ele passando pela sala dela, daquela colega de trabalho gostosa que ele sempre sonhou em chamar para sair. Coisa boba, um almoço que fosse. Mas gaguejava sempre que a via em sua frente. Ela era linda, perfeita. E o melhor de tudo era que não sabia disso. Então, além de ser uma deusa, era humilde e um doce de pessoa.


Ele gostava de passar perto da sua sala. O corredor tinha sempre o mesmo cheiro dos seus cabelos. Aqueles enormes cabelos ruivos e cacheados. Quem sabe dessa vez ele não tomava coragem para convidá-la para algo?


- Anda, vai... Você sabe que você me quer...


Como ela sabia? Ok... Para tudo... Ela não sabia. Não era com ele que ela estava falando. Mas com quem? Com quem? Quem era o safado que tinha sido corajoso o suficiente para passá-lo pra trás?


- Vai... Você me acha uma delícia, para de negar. Tá se controlando pra não passar a língua em mim, sentir meu gosto... Tasca logo uma mordida, para de frescura!


Meu Deus! Assim, em plena luz do dia, no escritório, mas essa mulher não tinha pudores... Que inveja... Quem seria o sortudo desgraçado que estava no lugar que ele daria os olhos pra ocupar? Por que ela não dizia aquelas baixarias pra ele??


- Vem... Bota logo esses dentes em mim... Me come... Me mastiga... Me bota toda na boca, você me quer mais do que tudo nesse mundo, para de fingir que é mentira... Você não vai parecer mais forte se continuar se fazendo de besta, se continuar resistindo... Cede logo... Cede... Anda... Abre a boca... Assim... Assim...


O coitado já quase não se agüentava mais, queria rasgar a roupa e dizer que ele não resistiria... Ele jamais diria não a ela... Ele diria sim... Somente sim... A tudo que ela quisesse, a tudo que ela pedisse. Ele deitaria no chão para ela pisar, a chamaria de rainha, o que quer que...


Mas como bom estabanado, tudo que ele consegue fazer é derrubar sua pasta no chão, fazendo um barulho estúpido que ele nem podia negar... Não tinha pra onde correr, só podia ficar ali, com cara de tacho... Então se jogou no chão, fez que tinha tropeçado. Botou a mão na cabeça, fingiu que tinha um galo. Uma concussão, quem sabe... Epa... Pra completar, faltava a cara de confuso... Onde estava? Onde...


- Evandro! Você está bem? Eu ouvi um barulho horroroso, você... Você caiu? Tropeçou? Quebrou alguma coisa? Quer que eu chame alguém?


Ela sabia o seu nome... Ela sabia o seu nome... Mas... Ele olhou pra dentro da sala e não havia mais ninguém. Talvez escondido... Não, não havia espaço pra isso... Não naquele cubículo... Ela estava... Comendo? O que era aquilo? Mas que prato mais triste...


- Ah, desculpa... Não te ofereço porque estou começando hoje uma dieta. A comida é terrível, eu sei. Nem eu tenho muita coragem de comer. Pra você ter uma idéia, e eu sei que isso é ridículo, eu estava fazendo um teatrinho comigo mesma... Fingindo que aquele brócolis é um brigadeiro, ou algo gostoso... Mas eu tenho que te confessar... Um brócolis não é nada sedutor...


Não... Ele não precisava que ela chamasse ninguém... Quem sabe outro dia ele não tomaria coragem... E a convidaria para almoçar... Outra hora... Outra hora...

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2008

Da obsolescência das tradições

Desde pequena sua avó sonhava com seu casamento. E alimentava sua cabecinha com todas as neuroses que deveriam perturbar a cabeça de uma noiva que se prezasse. Como deveria ser o vestido, a cerimônia que obviamente deveria acontecer na igreja em que todas as mulheres da família haviam se casado, o cardápio adequado, toda a burocracia que deveria respeitar para ter um casamento digno.


Quando ia visitar a avó, aprendia a crochetar, tricotar, bordar e costurar. Em uma idade apropriada, a avó começou a ensiná-la a cozinhar, lavar roupas à mão e passar camisas impecavelmente.


O problema era que ela nunca freqüentava a igreja sequer pra missa de domingo. Não gostava da balela dos padres, não gostava das velhas desafinadas cantando aqueles hinos irritantes, não gostava daquele monte de dogmas que deveriam ser seguidos para provar sua fé. Nunca acreditou que fé dependesse de igreja. Rezava em casa toda noite e, só porque não tinha fiscal, isso não fazia dela uma pessoa menos religiosa do que uma das coroas ratas de missa.


E casar de branco... Xii... Era melhor nem entrar nessa discussão... Se tinha uma coisa que ela não aceitava de jeito nenhum, era hipocrisia... Dependesse dela, casaria de vermelho!


Mas nunca levou isso tudo a sério, porque, no fundo, no fundo, ela achava mesmo era que nunca ia casar. Ou que sua avó morreria antes. E então ela poderia fazer o que quer que fosse do jeito dela. Uma cerimônia de juntamento, e olhe lá.


Até que conheceu o homem da sua vida, quem diria... E a menina enjoada, que morria de vontade de bordar caveiras e palavrões nos paninhos que a avó lhe dava, começou a se imaginar de noiva.


Não, ela nunca cedeu à igreja. Jamais sorriu quando se pensou de branco, caminhando até o altar. Mas queria se casar. E se aquele deveria ser o dia mais feliz da sua vida, ela teria de ter uma conversa séria com a avó.


Era simples. Ou uma, ou outra. E antes ela do que os bem-casados ideais...


Pois se sentaram as duas para um cafezinho com bolo, numa deliciosa tarde de sábado. E ela abriu o jogo. Queria mesmo era se casar pulando de pára-quedas, mas o noivo tinha medo de altura. Então decidiram fazer um enorme piquenique no jardim da casa dos pais dele em Petrópolis. Coisa boba, com um juiz oficializando a união, ela com um vestido florido, ele de jeans e uma bata. Depois todo mundo comendo um almocinho caseiro em umas mesas bem grandes, todo mundo conversando e falando alto...


Não queria bem-casado. A verdade é que ela não gostava de doce... Queria um bolo, sim, mas queria de chocolate. E não com aqueles recheios enjoados de sabores esquisitos. De chocolate. Assim mesmo. Bolo besta. Mas o dia era dela, o bolo era dela, então ela é quem tinha de escolher.


E mais uma coisa. Nada de lista em loja que vende coisas de cristais. O que ia fazer com aqueles jogos caros de jantar se ela não ia nunca ter coragem de deixar um monte de amigo estabanado passar os garfos e facas naquelas pinturas tão delicadas das porcelanas? E pra que tanto copo de cristal, que ia deixar ela com tanto medo de ver quebrar na mão dos mesmos amigos estabanados que iam certamente arranhar os pratos??


Queria mesmo era um chá de lingerie numa boate de strip, com as amigas lhe dando calcinhas sacanas de presente, falando asneiras sobre como ela deveria usar cada uma, dando dicas de sexo e contando histórias censuradas de coisas que elas já tinham feito. Todas enchendo a cara e perdendo a vergonha, botando dinheiro nas sungas dos dançarinos com os dentes. Coisas de que elas se arrependeriam no dia seguinte, ou morreriam de rir ao lembrar...


E ela ali, enumerando todas as subversões com que ela sonhava, falando sem respirar, com medo de perder a coragem diante da avó de 80 anos, quando a velhinha a interrompe...


- Minha filha... Você ama esse rapaz?


- Muito, vó...


- E ele é o homem da sua vida?


- Do lado dele eu encontrei uma paz que eu nunca tinha conhecido, vó...


- Então eu faço o bolo.


- Jura, vó?


- Claro, minha filha... Eu te ensinei todas aquelas coisas porque era assim que se fazia no meu tempo. Mulheres deveriam bordar, cozinhar, passar, casar virgens e de branco. Mas tanta coisa mudou... O que me importa é que seu casamento seja de verdade, que seja feliz. O casamento não é a festa, mas o que vem depois, é a convivência entre você e o seu marido. E os convidados que enchem a pança com os seus docinhos e vinhos e salgadinhos não vão pra casa com você. Eles não vão lavar sua louça, nem ajudar a mediar qualquer desentendimento entre vocês dois.


- Ai, vó! É exatamente o que eu penso, mas eu não imaginei que a senhora fosse entender...


- Shh!! Eu ainda não terminei de falar, menina! Que falta de educação...


- Desculpa... Continua...


- Eu só tenho uma coisa mais pra te falar... Se você ainda não tiver escolhido a boate, eu sei de um bom lugar...

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2008

TPM

e-mail 1


Imagina! Eu te liguei, mas nem precisava falar com você, não era importante, não... Acho graça disso. Quase nunca te ligo, mas quando ligo você não me atende. Toca, toca, toca e nada. Você simplesmente não atende!! Isso porque eu liguei não uma, mas 18 vezes, registradas no meu celular. Aquele mesmo celular que permanece ali, sem nenhuma ligação. Além de não me atender, canalha, não se dá o trabalho de ligar de volta. Me dá um ódio isso, não consigo nem explicar. Tenho vontade de pegar o telefone e jogar aquela merda na parede, só pra ter o prazer de ver ele se espatifar em mil pedacinhos e saber que, quando você resolver me ligar, não vai me achar! Tá me entendendo? Aliás, acho que ta na hora da gente conversar. Isso é uma tremenda falta de respeito, você não me dá valor nenhum. Deve ser porque eu, imbecil que sou, sempre te atendo. Corro quando você chama, faço todas as suas vontades. Te chamo de meu amorzinho, benzinho pra cá, coisa linda pra lá. E você só me chama pelo nome. E não atende o cacete do telefone quando eu preciso tanto de você. E se eu tivesse morrendo? E se tivesse me caído um dedo e eu estivesse sangrando até a morte, te ligando só pra te dizer que te amo? Minhas últimas palavras e você nem pra apertar o botãozinho verde e dizer alô. Custa tanto? O que você poderia estar fazendo de mais importante que ouvir minhas últimas palavras? E se eu tivesse sido seqüestrada e estivesse te ligando pra te passar as instruções dos seqüestradores e você neca de me atender? Sabe o que teria acontecido? Eu teria tomado um tiro no meio da testa. E você nem ia saber o que tinha acontecido! Aí ia morrer de remorso, seu sonso, aposto. Ou pior! Nem ia sentir remorso nenhum. De repente queria mesmo era se livrar de mim. É isso? Queria se livrar de mim? Se for isso, fala na cara, não foge não! Seja homem. Olha no meu olho e diz que não me quer. Diz que não me ama. Confessa logo e diz que foi tudo fingimento, que nunca me amou, que ficou comigo esse tempo todo por pena, que me acha uma tonta, uma fútil, que eu encho teu saco até o limite da loucura. Minha mãe é que tinha razão quando disse que eu ia pagar meus pecados ficando com você, mas como eu nunca escuto a minha mãe, dá nisso. Me ferro. Tô te ligando de novo enquanto escrevo esse e-mail, mas você continua não me atendendo! Olha isso! Entrou em caixa postal! Tá vendo meu número na bina e desligou na minha cara? É isso mesmo? Desligou na minha cara? Pois fique sabendo que agora não tem nem mais conversa, não quero mais saber das suas desculpas. Fica sabendo que se você me acha a conjunção de todas as coisas ruins que existem na face da Terra, tem quem me queira, tá? Aqui mesmo no escritório tem um cara lindo que me disse hoje de manhã que eu tava maravilhosa. De repente eu aceito o convite dele pra jantar. E você um dia vai saber o que perdeu. Não precisa mais me ligar...


e-mail – depois


Amorzinho... Sabe quando a gente foi ao supermercado e você pediu pra eu guardar as suas coisas na minha bolsa? Eu esqueci de te devolver seu telefone... E como você tinha botado pra vibrar, nem percebi que tava lá dentro, a bolsa tava na cadeira e eu nem tava ouvindo tremer... Tanto te liguei que a bateria acabou e o telefone desligou, tomara que você não esteja precisando dele pra nada, nem que tenha alguma ligação importante pra receber. Eu tava pensando em hoje você passar lá em casa, eu faço seu prato favorito e até a sobremesa. Pudim de pão com calda de ameixa, o que você acha? Comprei uma lingerie nova, preta, de renda, do jeito que você gosta, até passei na depilação na hora do almoço, tenho uma surpresa pra você... Já te disse hoje o quanto te amo? Porque eu te amo... Você é o namorado mais lindo desse mundo e eu tenho tanta sorte de ter você... Então, o que você diz? 20h lá em casa? Não precisa nem levar o vinho, eu passo no mercado antes de ir pra casa e compro... Te amo, tá chuchuzinho?


P.S.: O menino do escritório é gay. Ele disse que eu tava um luxo, não maravilhosa. E o convite era pra sair pra dançar. Alguma coisa de noite de mulheres, sei lá. Mas eu nem prestei atenção, era bobeira minha...

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2008

Memória

Tinha alguma coisa pra te contar, mas juro que não lembro o que. Foi alguma coisa que aconteceu e me fez pensar em você, ou então alguma coisa que eu vi, talvez...


Cheguei a fazer uma anotação no celular, escrevi alguma coisinha pontual, daquelas que eu leria depois e saberia exatamente o que tinha que te dizer, mas quem disse? Agora abri a maldita nota e fiquei olhando praquela frase idiota e sem sentido pensando “que raios eu quis dizer com isso?”. Ainda não deletei, quem sabe por algum milagre divino eu não me recorde o que ela representa...


É que nem a antiga técnica do barbante amarrado no dedo. Acho que fiz uma vez. Encarava aquele laço e sempre pensava qual seria a razão pro meu dedo estar embrulhado pra presente. Sabia que era para lembrar de alguma coisa, mas parava por aí...


Mas pelo menos o barbante esfregava na minha cara que eu tinha algo que não deveria ter esquecido. Celular é pior. Fica lá a notinha, escondida numa função do telefone que você só acessa por menu e se você não consegue lembrar do que queria contar sem anotar em algum lugar, vai lembrar de procurar a porcariazinha que escreveu pra poder saber do que se tratava? Parece piada...


Onde mesmo eu queria chegar com isso? Já até esqueci...

terça-feira, 22 de janeiro de 2008

Análise

Sinceramente? Não agüento mais te olhar...


Você não faz idéia do tanto que eu sonhei pra você, de todos os meus planos, de tudo que você jogou fora, com essa sua inconseqüência.


Sua idiota. Sempre escolhendo os caras errados, que te faziam mal. E nem adiantava falar, porque toda vez que você achava que estava amando, ficava burra, cega e surda. Nunca ia ouvir a voz da razão.


Besta. Perdeu tanta oportunidade, podia ter ido fazer aquele curso lá fora, lembra? E aquele estágio que te ofereceram na tal empresa que você sempre sonhou em trabalhar? Desde que se entendia por gente, dizia que um dia ia fazer parte daquilo... E deixou passar. Tudo porque o tal namorado da vez não queria se mudar. E nasceu colada com o infeliz por acaso? Tava grudada pelo cordão umbilical?


Às vezes eu tenho vontade de te dar uma surra. Tão inteligente e tão tapada... Como pode?


Você sempre desenhou tão bem, mas nunca quis levar isso pra frente... Podia ter sido artista. Podia pelo menos ter transformado isso num hobby, de repente você seria menos irritada... E menos irritante... Mas nem pegar num lápis você pega mais... O que foi que te aconteceu?


E as suas comidas? Que maravilha... Todo final de semana um prato diferente, criativa, talentosa... Ninguém nunca entendeu de onde você tinha tirado aquilo, porque na família ninguém te ensinou. Aliás, ninguém sabia cozinhar que nem você pra ter te ensinado a fazer coisas tão espetaculares. E hoje em dia, nem um ovo você frita. Já fez amizade com todos os entregadores e atendentes de restaurantes possíveis. Afinal, sem eles você morreria de fome, confessa. Quem diria...


Você era a mais bonita, a mais inteligente. Era até a mais legal, ninguém poderia discordar disso... Todos gostavam de você, muitos queriam ser você, pra falar a verdade...


Acho que só você não queria muito ser você... E até hoje eu não sei o porque.


Só sei que não agüento mais te olhar, não agüento mais me ver, seu rosto, no espelho...

quarta-feira, 9 de janeiro de 2008

Encasulamento

Aquele deveria ser o dia mais feliz de sua vida. Um dia cuja perfeição poderia ser maculada tão somente pela sua ansiedade.


Aquele deveria ser o homem da sua vida. A pessoa certa. Sem sombra de dúvidas, o único que poderia completá-la, amá-la e respeitá-la, mesmo nos momentos difíceis.


Mas ela não estava certa. A cada passo que dava em direção ao altar, mais vontade sentia de apertar o braço de seu pai, de frear e voltar. E se ela não fosse feliz para sempre? Sequer podia dizer que estava feliz então, quanto mais depois... Anos e anos depois.


Ainda dava tempo de voltar, o padre ainda não havia dito “pode beijar a noiva”.


E se o amor acabasse antes da hora? Será que ele estava lá, pra começo de conversa?


E se faltasse respeito? Pior... E se o respeito fosse pura hipocrisia, na tentativa de evitar brigas que não pudessem jamais ser reparadas depois?


E se a felicidade não fosse suficiente?


E se a tristeza fosse maior que tudo?


E se a riqueza os cegasse e os impedisse de enxergar as coisas realmente importantes?


E se a pobreza fosse tanta e tamanha que os levasse a um ressentimento mútuo?


E se lhes faltasse saúde?


E se a doença tornasse um deles um transtorno para o outro?


E se a morte não os separasse, mas a própria vida? As coisas mudam, não é? As pessoas mudam...


Ela reconheceu poucos rostos no percurso, sentia como se o oxigênio fosse lhe faltar antes que conseguisse chegar ao final. Viu amigos, antigos casos e até ex-namorados com quem mantivera um bom relacionamento.


A cerimônia foi um grande borrão. Ela tinha a impressão de que precisaria que a cutucassem para que soubesse a hora de falar. Como uma atriz que esquece a fala na estréia da peça, na cena mais importante, quando toda a iluminação do palco se concentra sobre ela. Mas parecia estar no piloto automático. Embora ausente, conseguia cumprir sua função.


O padre perguntou se alguém ali se opunha àquela união. Que falassem naquele instante, ou guardassem seus motivos consigo, calando-se para sempre.


Seria com ela? Poderia ela arrancar o véu e gritar que tinha dúvidas? Que aquele vestido estava lhe dando uma coceira impossível? E que tudo que ela mais queria naquele momento era tomar um Prozac tamanho família, ou doses cavalares de qualquer bebida alcoólica que fosse capaz de derrubá-la até o dia seguinte?


Mas ficou quieta.


E o seu silêncio ecoou ensurdecedor pelas paredes da capela, junto com todas as lamentações daqueles que consideraram inapropriado manifestar seu arrependimento, seu amor nunca declarado, ou mesmo seu amor já milhares de vezes professado.


Quem sabe... Talvez todo aquele mal estar fosse embora com o tempo...

segunda-feira, 7 de janeiro de 2008

Nada de mim

Ela sentou pra escrever. Estava na dúvida, falar sobre o que?


Discordava que os melhores textos eram filhos da tristeza e de sentimentos ruins em geral, mas sabia que não poderia falar de felicidade. E era só disso que queria falar.


Sempre quis entender esse paradigma da inspiração estar ligada à depressão, mas faltavam-lhe argumentos para contestá-lo com embasamento teórico. Queria algo mais concreto do que “isso é uma imbecilidade sem tamanho...”.


A verdade é que as pessoas tendem a ser medíocres. A felicidade alheia incomoda. Esfrega na cara e cutuca a ferida.


A tristeza dos outros, no entanto, dialoga com qualquer uma. Sem sotaques, sem ruídos, fala tão claramente como se estivesse sussurrando delicadamente ao pé do ouvido. E dá aquela satisfação mórbida de saber que alguém está tão ou mais fudido que você...


É horrível? Mas é verdade!


Ela sentou pra escrever e contemplou novamente aquela tela vazia, amiga de tantas horas.


Decidiu abrir mão da felicidade e escrever ficção. Falou de confusão, de algo talvez triste, incômodo. Parecia que estava abrindo seu coração, mas com requintes de figuras de linguagem e toques de liberdade poética.


Escreveu em primeira pessoa, criando a ilusão de que realmente falava de si. A mesma ilusão que faz concluir que toda terceira pessoa fala de outro, conta a história alheia. Muitas vezes, até, fofoca...


Ela se pôs ali, por completo, naquela mentira contada sobre alguém, mas na sua voz, nas suas palavras. Fez-se enxergar no que não a pertencia, no que sequer conhecia. Pôs-se literariamente triste quando estava realmente feliz.


Descobriu ali sua válvula de escape e percebeu que nem todo texto precisa ser auto-biográfico...

sexta-feira, 4 de janeiro de 2008

Os seus, os meus e os nossos...

Outro dia resolveram matar as saudades os fantasmas do meu armário. Vieram, descarados, como se nunca tivessem me deixado. Parece que sentem cheiro de felicidade. É só as coisas estarem dando certo que resolvem aparecer.

Fui educada, nada mais do que isso. Disse que estava de saída, mas eles insistiram que seria uma conversa rápida. Ficaram relembrando o passado, cada um tentando provar que tinha tido mais importância ou significado. E eu olhando pro relógio, com medo de me atrasar pro cinema. Você me esperando.

Perdi a paciência, aquele papo não me interessava em nada. Disse que tinha sido legal, que a gente se falaria... Eu te ligo ou você me telefona... Outro dia, outra hora...

Então vieram me visitar os fantasmas do seu armário. Caras de pau, assanhadas, querendo me assustar, com uma conversinha furada de que eu nunca teria com você o tanto de história que uma tinha, ou o tanto de coisas em comum que tinha tido a outra. Sirigaitas, isso sim.

Entraram sem ser convidadas e foram logo se sentando no meu sofá, amiguinhas venenosas tricotando no meu sofá...

Estavam sem pressa, acho que tinham tirado o dia só pra me tentar.

Fiz um café fresquinho e apresentei os seus fantasmas aos meus fantasmas. Deixei-os conversando e corri pra pegar o metrô.

Você já estava me esperando...