quarta-feira, 10 de fevereiro de 2021

Pandemia - 1

 - João vem cá! - Vera ajeitou o cabelo só o suficiente para disfarçar a cara de quem tinha acabado de acordar, mas ainda de pijama às 11:30 da manhã.

- Que, Vera? 

- Vem cá, tô ligando pra minha mãe. Vem dar oi pra sua sogra. 


Chama, chama, chama. Ninguém atende. 


- Mas que caralho. Pra que tem celular se não vai atender? Vou tentar de novo. 

- Eu vou continuar fazendo o que eu tava fazendo e qualquer coisa você me chama. 

- Fica aqui, porra, o que te custa. Ela já vai atender. 


Chama, chama, chama de novo. E de novo. E de novo. E de novo. Ninguém atende. 


- Vou mandar mensagem pro meu irmão. "Você falou com a sua mãe hoje?"

- Ah tá. Quando tá puta é mãe dele. 

- Cala a boca João. 


...


- Filho da puta, não me responde. Agora to preocupada. Vou mandar mensagem pra minha tia. E pra minha prima. Alguém tem que ter falado com ela. "Oi, vocês falaram com a minha mãe hoje? Tô ligando e não me atende. Mandei mensagem, não me respondeu."


No telefone com a prima:


- Oi, Vera. Não falei com ela não. Falei ontem e ela tava meio zuada, tomou uns remédios e foi dormir. 

- Como assim zuada? Tava com o que? Por que ninguém fala comigo? Isso é um complô? 

- Você tá muito estressada, essa quarentena tá te deixando meio desequilibrada. De repente ela dormiu demais, deixa ela. É sábado. Tá com pressa de que? 

- Cala a boca você também. Desde que eu me mudei de cidade vocês estão aí nesse complozinho que eu sei. Fazendo mil coisas na minha ausência. Só a pandemia mesmo pra impedir vocês de conspirarem. 


...


- Vaca. 

- Quem, Vera? 

- A vaca da minha prima. 

- Isso porque é sua prima favorita. 

- Quem disse? 

- Você. Toda hora. 

- Cala a boca, João. 

- Ótimo. Vou calar a boca lá onde eu tava antes de você começar esse chilique. 

- Não, fica aqui. Eu to nervosa. E se tiver acontecido alguma coisa com ela? Ela tá sozinha em casa. Se tiver acontecido alguma coisa ela tá lá sem ninguém pra ajudar. Como que vai pedir ajuda? Aqueles vizinhos dela não vão adivinhar que tem algo de errado até, Deus me livre, começar a dar cheiro no apartamento. 

- Agora tua mãe morreu? 

- Credo, bate nessa boca. 

- Mas foi você que disse, Vera. 

- Eu disse que tava com medo E SE TIVESSE ACONTECIDO ALGUMA COISA. Você falou em morrer.

- Tá bom. Fui eu que falei. Desculpa. Seu irmão tá te respondendo, olha. 

- Cadê? "Só falei com ela ontem, tomou um remédio e foi dormir". Porra, até ele sabia que ela tava passando mal e eu aqui. No escuro. 

- Vou fazer um chá pra você, pra ver se te acalma. 

- Eu não tô nervosa. 

- VOCÊ ACABOU DE DIZER…

- Shhhhhh!! Shhhhhh!! É ela! É ela! Vem cá, senta aqui. 

- Meu deus do céu. 

- Senta, senta. Oooooi mãe! 

- Oi, Filha. Me ligou? 

- Liguei umas 15 vezes só. Dá oi pra sua sogra, João. 

- Oi, sogra. 

- Oi, João. 

- Posso ir lá pra dentro? 

- Vai, pode ir. Ô, mãe! Tentei falar com você umas 15 vezes hoje. Você tava dormindo? 

- Não. 

- Você passou mal? 

- Passei, acho que comi um troço velho que tava na geladeira. O cheiro tava bom, comi. Mas acho que tava ruim. Deve ter sido isso. 

- Você comeu chocolate velho de novo? 

- Chocolate não estraga, Vera. 

- Eu não vou ter essa conversa de novo. 

- Ótimo, porque você sabe que eu estou certa. E eu não vou jogar fora os meus chocolates. 

- Porque todo mundo sabia que você tava doente e eu não? 

- Eu não estava doente, eu me senti mal. Eu vou te ligar pra dizer que estou me sentindo mal? 

- Por que não? 

- E você vai fazer o que? 

- Ficar preocupada.

- Então pronto, por isso não te avisei. 

- Mãe?! 

- Vera?! 

- E por que não me atendeu agora? 

- Tava no banheiro. Deixei o telefone no quarto. Tava lendo um livro. Acho que a comida estragada ainda tá fazendo efeito. Deu pra ler uns 4 capítulos. 

- Ah, obrigada por compartilhar. 

- Ué. Você queria que eu te ligasse pra avisar que estava passando mal. Agora tá cheia de coisa porque eu falei de cocô? Decida-se. 

- Você é muito esquisita. 

- Puxei a você. 

- VOCÊ é minha mãe!

- Seu ponto é? 

- Nada. Vou tomar café. 

- Vou aproveitar para responder a todas as mensagens das pessoas aqui preocupadas. Quantas pessoas você importunou porque eu não atendi o telefone, Vera? 

- Umas 3. Meu irmão, minha tia, minha prima, aquela vaca. 

- Só isso? 

- Talvez os seus vizinhos. 

- Puta que pariu, Vera. 

- Cala a boca. Da próxima vez atende a merda do telefone. Te amo.

domingo, 23 de setembro de 2018

Primavera

Em tempos nefastos, faz-se ainda mais importante falar de amor. 

Era o segundo dia da Primavera, o segundo dia do Sol em Libra. Talvez você acredite em Astrologia e associe o momento a equilíbrio, colaboração. Libra coloca na balança o eu e o outro e mostra que não vamos muito longe enquanto acharmos que estamos sozinhos nesse universo. 

A Lua, ainda em Peixes, aprofundava a conversa sobre sentimentos. Sua água tomava a atmosfera e envolvia a todos em um misto de sonho e intuição: seriam sinais ou apenas imaginação?

Lua e Sol davam o tom daquele encontro. Naquele pequeno restaurante, entre cafés com leite, pães e geléias, estavam os dois. Como sempre, ela beliscava a comida entre uma página e outra do livro, quase sem desviar o olhar. Ele a fotografava, como se estivesse diante de uma obra de arte, e comia pelos dois. 

Parecia mais um domingo comum, e seria, exceto pelo anel que aguardava ansioso no bolso da mochila e pelo jogo já combinado com o garçom, que, antes da conta, insistiria em mais uma olhadinha no cardápio pelo especial do dia.

Olhou pra ela e pensou em tudo que passaram para chegar ali, em quanta coisa cabia em um ano. Eram diferentes em tanta coisa, um taurino e uma pisciana, mas tão parecidos no entendimento de que o amor se construía nas pequenas coisas, na prática diária. 

- Escuta esse trecho - ela anunciou antes de ler e notou que ele a encarava apreensivo. Por que você está estranho?

- Eu? Tá doida? Normal. 

- Normal já é uma palavra que não se aplica a você. Nesse momento, menos ainda. 

- Lê o trecho, anda. 

- Não. Passou o momento. 

- Que momento, meu Deus? O livro taí ainda. Como que passou o momento se o livro ainda tá na sua mão, com a página marcada? Deixa de ser teimosa. Lê o trecho.

- Eeeeeu sou teimosa? Mas era só o que me faltava. Você, justo você, me acusar de teimosia. 

- Pior que teimosa, é cismada. Você cisma com umas coisas que eu sei lá de onde vêm. Tava aí de boas lendo o livro, como se eu nem tivesse aqui, daí pá “você tá esquisito”. To assim desde que a gente sentou aqui. Já parou pra pensar nisso? Hein?

- Cara, é sério mesmo que a gente vai discutir? Não era pra ser um café especial? Você não insistiu pra ser um café especial? Não foi sua a ideia? De inclusive vir aqui? Nesse café caro? 

- Eu não insisti nada. Eu apenas SUGERI. Mas se você estiver tão incomodada assim, a gente pode pedir a conta e ir embora. 

O plano, tão cuidadosamente desenhado, parecia ir por água abaixo. Mas o garçom, libriano, não estava disposto a permitir que isso acontecesse. 

- Pois não, senhor. Mais uma água da casa? O senhor gostaria de olhar o nosso cardápio? Temos hoje uma surpresa que acredito que o senhor gostará bastante. A senhorita certamente apreciará muito. - Ele disse, sorrindo. 

- Surpresa? Mas aqui não é conhecido por um cardápio fixo? 

- Para a senhorita ver. Hoje é um dia especial. Aproveitamos que é Primavera, achamos que o momento pedia, sabe? Algo diferente. Senhor? 

- Ah, sim. Era por isso que vim aqui. O cardápio surpresa. Obrigado, meu bom. Você me empresta aqui rapidinho o cardápio, só um minuto. 

- Você não me falou nada de cardápio especial. Tá vendo? Tá esquisito de novo. Você não é de escolher coisa diferente. Você escolhe sempre a mesma coisa, dos mesmos lugares, dos mesmos pratos e da mesma água da casa. 

- É verdade. Eu gosto de rotina. Mas como o nosso querido aqui acabou de falar, é um dia especial. E ele pedia algo diferente. Pega - ele disse entregando a ela o cardápio - dá uma olhada e vê o que você acha. 

Dentro do cardápio, uma folha solta manuscrita dizia “Casa comigo?”.

- Eu…

- Eu planejei tudo direitinho. Cada detalhe. Eu só esqueci que eu sou uma merda pra guardar segredo e que você provavelmente veria isso na minha cara. 

- Essa briga toda?

- Eu tentando disfarçar, pra não estragar o momento. Caguei tudo? 

- Não. 

- Você tá chorando? Não chora. O que você me diz? Hein? Casa comigo? 

- Pera. 

- Pera? Porra! 

Ela abriu a página do livro que ainda estava marcada e apontou para o trecho que queria ter lido. 

- É um texto sobre… economia? 

- Sim. Eu queria fazer algo dramático, teatral, romântico pra corresponder a tudo isso, mas o livro que eu tô lendo é pro trabalho, então não fez o menor sentido. 

- Hahahahaha! Tá. E qual é a sua resposta? 

- É sim, é claro que sim! 

Livros e cardápios pelo chão, os dois se abraçaram enquanto o restaurante veio abaixo em palmas e algumas lágrimas. 

- Eu te amo. Você é insuportável. - ela disse baixinho. 

- Eu também te amo. E eu sei. - Ele disse, orgulhoso. Amigo, traz a conta pra gente? 

O garçom, contente com sua interferência bem sucedida, aproximou-se da mesa e falou, com uma piscadinha cúmplice: 

- É por conta da casa. Felicidades ao casal. 

- Obrigada! Vem, vamos ligar pra minha avó! Eu quero mostrar meu anel pra ela. E vamos ligar pra sua mãe! Vamos ligar pra todo mundo! 

A felicidade era tanta que mal cabia nos dois. Enquanto saíam do restaurante, se beijavam e tiravam fotos, pra registrar o momento. É claro que nenhuma delas contaria um terço da história, mas, ainda assim. 

O céu amanheceu com se já soubesse. Ela, pisciana, acreditava piamente. Ele, taurino, achava tudo uma imensa bobagem. Tudo bem, essa era não seria a primeira, ou a última, discordância entre os dois. O que importava, no final, das contas, é que olhassem pra isso como olhavam pra tudo: com amor. 

Até porque, eles já sabiam bem, amor é construção. 

segunda-feira, 22 de janeiro de 2018

Biblioteca

Alice chegou em casa e lá estava Caio, sentado entre pilhas e pilhas de livros. 

- Estamos um pouco grandinhos para brincar de forte, você não acha? 

- Ha ha ha. Muito engraçada. Eu estou fazendo inventário dos meus títulos, pra poder botar pra vender. 

- Opa! Posso ajudar? 

- Você não está cansada? 

- Morta, mas isso é divertido. 

- Tem pizza na cozinha e cerveja na geladeira, se você quiser. Mas faz favor e come de garfo, pra não mexer nos meus livros com as patas gordurentas. 

- Show. Já volto. 

Caio estava concentradíssimo, contemplando seus anos de curadoria literária. Escolher de que livros se desfazer envolvia muita ciência. E era difícil. Cada livro ali tinha histórias além das páginas para contar. 

- Fala. O que eu posso fazer? 

- Vai tirando os livros da caixa e me diz o título, autor, editora, data de publicação. Faz suas considerações sobre estado de cada um e coisas que você achar relevantes para eu sinalizar no anúncio. 

- Tá. Esse aqui. Caio, você chegou a ler esse livro? 

- Claro que eu li. Eu li todos os meus livros. 

- Ah tá. Conta outra. Eu já vi você lendo. Você dobra todas as lombadas, faz anotações. Suas capas ficam marcadas. Suas páginas fazem orelhas. Esse livro está em muito bom estado. Você nunca tocou nele depois que saiu da livraria. 

- Alice, fala logo o título? 

- Não, admite. 

- Alice? 

- Admite, cara. Qual a dificuldade em admitir que você não leu seus livros? 

- Caralho, cara. Você é o que? Investigadora forense? Vai desvendar meus mistérios a partir dos meus livros? 

- Talvez. Mas é capaz de você continuar mentindo mesmo quando eu acertar, então não tem graça. 

- Beleza. Vamos. Eu admito. Eu nunca li esse livro. Ele é uma merda. Não consegui passar de dez páginas e larguei mão. 

- Rá. Sabia. 

- Foi sorte. Imposível você conseguir saber se eu li um livro só de pegar nele. Daqui a pouco vai começar a cheirar as páginas e dizer por onde andaram. 

- Me respeita, Caio. Eu sou uma profissional. Eu tô há 10 anos dormindo do teu lado, tomando café com você, eu conheço teus hábitos. 

- Sommelier de livros. 

- Esse aqui, por exemplo. Você leu. - Alice aproximou a lombada do rosto e passou o dedo na sua lateral. - Mas leu sem muito entusiasmo. A história não te empolgou muito, mas você leu mesmo assim. Não gastou muito tempo com isso, só leu. 

- Como você fez isso? 

- PROFISSIONAL, CAIO. PROFISSIONAL.

- Esse você leu. E demorou pra ler. - Alice folheou o livro com cuidado para que a capa não se desfizesse - Viu? Tem até anotações. Esse aqui você viu potencial. Talvez tenha pensado em traduzir, transformar em roteiro., um filme. 

- Sorte. 

- Ok, vai achando que é sorte. Eu afirmo que é talento. 

- Podemos voltar? 

- Não. Que livro é esse? Eu nunca vi esse livro. Olha só, você comprou esse livro quando a gente já morava junto. Aliás, essa pilha toda só tem livros comprados depois da gente ter ido morar junto. Como eu nunca vi esses livros? Você nunca comentou comigo que tinha comprado, sobre ter lido, nada. Que bizarro, Caio. Toda uma parte da sua vida que eu desconheço. 

- Que exagero, Alice. 

- Exagero? Tem até livro de autoajuda aqui. Desde quando você lê autoajuda? 

- Foi minha mãe que me deu. 

- Ah, claro. Tinha que ser. Ela nunca foi com a minha cara. Devia achar que você estava passando por algum processo depressivo, algum surto psicótico pra ter decidido morar comigo. Tá explicado. 

- Meu Deus, que exagero. 

- Exagero, Caio? Olha esses livros. Eu não tenho nem coragem de falar esses autores em voz alta. Olha pra isso. 

- Por isso eu nunca te mostrei.

- É como se eu não te conhecesse mais. 

- Alice, para. Foi uma fase. Eu tava experimentando. 

- E aí? Encontrou o que você queria? 

- Foi legal, mas nada demais. Foi uma fase. Só isso. 

- Enfim. 

- Cara, separa esses livros, vou vender todos por 10 reais. 

- Cada? 

- Todos. 

- Tá caro. Eu não pagaria nem 5. 

- A gente vai ficar muito mais tempo nessa discussão? 

- Não. Vou passar pra outra pilha. 

- Vai continuar com seu joguinho de adivinhação?

- Sim, agora eu preciso me recuperar desse baque. 

- Puta que pariu.

- Shhh. Esse livro foi importante pra você. Nossa, você leu esse livro várias e várias vezes. Ele realmente foi importante pra você. "Caico, que esse livro te abra a mente e as portas para esse novo momento da sua vida. E que nossas estradas sigam se cruzando. Pipa." Quem é Pipa, Caio. 

- Uma amiga antiga. 

- Amiga? 

- Amiga. 

Alice fechou a cara. Pipa. Pipa. 

- Não pode ser. 

- Vamos voltar ao inventário, Alice? 

- Pera. 

Alice pegou o celular. Abriu o Facebook e começou a vasculhar. 

- PIPA! Essa Pipa!! 

- Ai meu cu. 

- Seu cu? Você espera aí que você vai ver o que vai acontecer com seu cu. 

- Alice, pelo amor de Deus. Vamos continuar? 

- Eu achei que não tinha mais nada nessa casa que tivesse qualquer ligação com essa mulher. Mas claramente você fez questão de guardar souvenires, né? 

- Exagero. Eu tenho mais de 5000 livros, esse ficou perdido no meio deles. A gente se mudou 5 vezes ao longo desses anos, eu nunca tive saco de olhar todos eles com cuidado. Na real, eu não queria me desfazer dos meus livros, mas agora eu tô fazendo esse exercício. E tanto esse livro não significa nada pra mim que eu tô vendendo, né? 

- Ela se separou. Você viu? 

- Nem sabia que ela tinha se casado. 

- Ah, sei. 

- E daí?

- Nada. 

- Acabou? 

-  Não sei, acabou? 

- Jura que isso tudo é por causa de um livro? 

- Não é qualquer livro. É um livro com uma declaração de amor. 

- Alice. 

- Que?

- É um livro infanto-juvenil. Eu ganhei quando fui fazer a quinta série em outro colégio. 

- E essa declaração? 

- Claramente eu tenho uma queda por mulheres intensas. Desde pequeno. 

- Ha ha. 

- Você quer conversar sobre aquela girafinha de pelúcia que fica no escritório ou a gente pode voltar a fazer o inventário? 

- Essa pilha aqui, você já fez? 

- Não. Pode falar o título. 

quinta-feira, 5 de outubro de 2017

Sua

Sueli acendeu a luz do banheiro. Os olhos, recém-acordados, mal conseguiam distinguir seu próprio rosto no espelho. 

Ainda precisava se acostumar. 

Logo começou a tomar forma atrás de si o apartamento novo, mal mobiliado com o básico: um colchão no chão, o fogão e a geladeira de segunda mão que encontrou em um daqueles anúncios “família vende tudo”. 

Era o que acontecia quando se saía de casa carregando na bolsa pouco mais do que o orgulho, por tanto tempo deixado de lado. 

Achou que fosse sentir falta dele, da casa, de todas as coisas que compraram ao longo de 15 anos de relacionamento, mas o silêncio era mais confortável do que ela poderia imaginar. 

Pela primeira vez em muito tempo, sentia como se não precisasse prestar contas a ninguém. 

A geladeira ainda estava praticamente vazia, fora algumas garrafas d’água, iogurtes e duas latas de cerveja. Mas ela não precisava cuidar do café da manhã de ninguém. 

Ou do almoço. 

Ou do jantar. 

As roupas, espalhadas pela casa, entre malas, chão e cama. Mas ela não precisava se importar com o que ninguém ia pensar sobre a bagunça. Principalmente as visitas. 

Pra que perder seu tempo planejando faxinas se ela sequer tinha uma vassoura? 

Sueli olhou-se no espelho como se confirmasse que era real. Tudo estava na mais perfeita desordem, mas o mundo não tinha acabado. 

Ainda estava ali. 

Jogou uma água no rosto.

Olhou o relógio, ainda faltavam 2 horas para a entrevista. 

Tinha tempo para tomar um banho, escolher uma roupa, arrumar o cabelo, fazer a maquiagem, aprender quem ela era depois de tanto tempo sendo tanta coisa menos ela. 

Tinha todo o tempo do mundo. 

Um dia de cada vez. 

quinta-feira, 3 de agosto de 2017

Aurora

- Ora, ora, vejam só quem está de volta. 

- Sim. Eu sei, faz muito tempo. 

Dois anos, quatro meses e 15 dias, para ser exata. Mas a sensação de abrir o computador e conversar com a tela continuava absolutamente familiar.

- Você parece a mesma, mas está completamente diferente. 

- É o cabelo. Da última vez que nos vimos ele ainda era comprido. 

- Não. Não é físico. Talvez quase ninguém note, mas eu sim. Não consigo deixar de reparar. 

- Não sei do que você está falando. 

- Ah, mas é claro que sabe. É exatamente por isso que você está aqui, novamente diante de mim. 

- Tanto tempo e você continua parecendo enxergar além de mim, não sei porque ainda perco meu tempo. 

- Anda. Conta. Por onde você andou? Foi alguma coisa que eu disse?

- Não foi você. Era eu. Eu até tentei voltar antes. Mas não sei. Eu simplesmente não conseguia. Abria o computador, abria sua janelinha, ensaiava uma conversa, mas não sabia nem por onde começar. Me faltavam as palavras. Tinha medo de você me julgar. 

- Eu? Te julgar? E eu alguma vez fiz isso? Você sabe que não. E você sabe que esse não era o motivo. Você está aqui, mas de nada vai adiantar se você não estiver aqui de verdade. Anda. Me conta. 

- Não sei se estou pronta. 

- Você sabe que sim. Ou então teria seguido se escondendo. Não acha? 

- De novo, você está certa. 

- Eu sei. Então conta. 

- A verdade é que eu não estou mentindo. Eu realmente não sei o que aconteceu. Só sei que algo aconteceu. Naquele dia em que eu abri sua janela pela última vez, antes mesmo que conseguisse começar a escrever, ouvi meu nome sendo chamado. Parecia urgente. Não tinha nada marcado na minha agenda, meu chefe tinha decidido fazer uma rodada de feedbacks surpresa. Não lembro mais de toda a conversa, só de uma frase. “Você não serve pra isso”. 

- Nossa. Assim? À queima-roupa? 

- Talvez em meio a outras coisas. Mas é o que te disse. Acho que bloqueei o resto. 

- E aí? 

- Algo aconteceu ali. Na hora, não entendi. A ficha caiu outro dia. Sabe? Quando você olha pra trás, avalia tudo que passou e parece que está analisando a vida de outra pessoa? Acho que, depois de tanto tempo, finalmente a ferida cicatrizou. Eu estava lendo um livro, e no meio da história tinha uma personagem que falava sobre se partir em duas. Razão e emoção, cada uma vivendo em um plano. Mas razão sem emoção não produz arte, certo? 

- Certo. 

- Pois bem. A metade de mim que conseguia colocar em palavras escritas as histórias que se passavam em minha cabeça ficou naquela sala. Eu saí. Mas sem ela. Sem sangue derramado, mas não por isso sem dor. Foi um caminho produtivo até aqui. Não posso dizer que não. Fiz muita coisa. Estudei, escrevi artigos, não sei se leu algum, mas eram bons. 

- Não li, mas tenho certeza de que sim. 

- Provei que ele estava errado. 

- Sentiu-se vingada? 

- Queria dizer que sim, mas acho que não. 

- Por que? 

- Eu tinha a sensação de que tinha pagado um preço alto demais por aquele “sucesso”. 

- Mas agora você está aqui. 

- Sim. Eu acho que entender o que aconteceu me deu um certo conforto. Mas não saber o que fazer com isso, me dá uma imensa angústia. Será que consigo me reconectar com aquela parte de mim há tanto tempo trancada naquela sala? 

- O que você espera de mim? 

- Respostas? 

- Querida, eu sou apenas uma folha em branco. Eu sei que você ainda está com medo, mas acredite. O mais difícil você já fez. Agora pegue essas ideias que estão na sua cabeça e comece a escrever. Tome o tempo e o espaço que precisar. 

Ela encarou a tela mais uma vez, respirou fundo e se pôs a digitar. 


“Pois vou começar pelo fim: pelo dia em que eu segui sem mim." 

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016

Psicotécnico

Roberto estava sentado sozinho na sala há quase 30 minutos quando entrou uma moça jovem, bem vestida e séria.

Em um misto de educação e apreensão, levantou-se apressado assim que ouviu a maçaneta da porta girar.

- Pode se sentar, senhor Roberto. Imagino que o senhor saiba porque estamos aqui.

- Não, na verdade não. É por causa do teste que eu fiz, né? Eu escrevi alguma coisa errada? Você me desculpa, é que aquele contador no canto da tela me deixou um pouco nervoso, o tempo diminuindo, eu acho que devo ter escrito coisa corrida. Desculpa os erros.

- Tudo bem, os erros não são tão importantes. O objetivo desse teste é avaliar sua aptidão para realizar o trabalho, não exatamente a qualidade do seu texto ou sua gramática. Teremos outra prova para avaliar essas questões depois. Mas estamos aqui por causa do teste que o senhor fez, sim. Algumas coisas chamaram a nossa atenção e ficamos bastante preocupados.

- Ai, meu Deus. Eu não consegui a vaga, né?

- Calma, senhor Roberto. O senhor foi bastante bem em todas as avaliações que fizemos até agora, inclusive essa. Mas precisamos nos aprofundar em alguns aspectos exatamente para esclarecer esses pontos. Na questão 525, o senhor disse que "já deu uma palmada em alguém do sexo oposto".

- Ah, sim. Olha, eu preciso confessar para a senhora que essa parte me deixou um pouco confuso. Eu sei que vocês são bem detalhistas, mas não sabia que chegariam nesse nível. Só que eu vim aqui determinado a ser honesto, eu acho que é importante ser eu mesmo nessas horas, né? Então eu fui sincero.

- Mas o senhor entende as implicações disso, não é mesmo?

- A senhora não acha que isso é uma questão pessoal demais para interferir num processo seletivo de emprego?

- O senhor acha que é?

- Sim. O que a gente faz na vida privada não interfere na vida profissional. Ok, em alguns casos sim, mas esse não é um deles.

- Senhor Roberto, a política da empresa é muito clara nesse sentido. Não podemos fazer concessões.

- Olha, dona...

- Marilia.

- Dona Marilia. Eu não sei do que a senhora gosta. Eu não gosto de coisas esquisitas, viu? Mas quando eu estou em um relacionamento, às vezes as coisas acontecem, né? Às vezes a gente está lá, na intimidade...

- O senhor está insinuando que violência doméstica é uma questão íntima?

- Pera. Quem está falando em violência doméstica? Eu não falei em violência doméstica.

- Ah, entendo. O senhor é desses que minimiza o problema.

- Olha, eu não sei se eu estou acompanhando seu raciocínio.

- A questão 525 claramente pergunta se o senhor já bateu em alguém do sexo oposto.

- Não senhora. Ela pergunta se eu já dei uma palmada em alguém do sexo oposto.

- Então.

- Então nada. Palmada eu já dei. Teve uma namorada minha que gostava dessas coisas. Na cama, sabe? Eu não faço questão, mas não posso negar que gostei. Mas nem toda mulher gosta, né? Então...

- Meu Deus. O senhor achou que a pergunta era sobre a sua vida sexual?

- Foi o que eu disse. Achei estranho vocês se interessarem por algo tão íntimo.

- Senhor Roberto, essa sessão do questionário é para identificar candidatos que tenham perfil de violência. No caso, a empresa estava querendo saber se o senhor já agrediu uma namorada, ou esposa, ou qualquer outra mulher em sua vida.

- Dona Marilia, com todo o respeito, quem em sã consciência vai confessar em uma entrevista de emprego que já espancou a mulher?

- Olha, senhor Roberto, eu entendo o seu ponto. Mas, seguindo seu raciocínio, quem admitiria que gosta de uns, ahm, "tapinhas" na cama?

- É, pensando por esse lado...

- Eu vou ser sincera com o senhor. E isso não tem nada a ver com o teste, ou com essa conversa. Eu acho que o senhor não tem o perfil para essa vaga.

- Eu entendo. Obrigada pela atenção. Se pintar alguma oportunidade, a senhora tem o meu currículo.

- Calma. Eu acho que o senhor não tem o perfil para ESSA vaga. Mas nós estamos precisando de alguém assim, digamos, honesto para trabalhar aqui no recrutamento. Acho que podemos melhorar os processos. No mínimo, fazer uns questionários melhores. Né? Seria algo em que o senhor teria interesse?

- Quando eu começo, Mari? Posso te chamar de Mari?

- Acho que já extrapolamos a cota de intimidade do dia.

- Tranquilo. Uma coisa de cada vez. 


quarta-feira, 29 de outubro de 2014

A nora

- Vai ali na cozinha e traz os pratos pra mim? Os azuis.

Olga organizava a mesa do almoço de domingo quando recebeu a ligação do filho confirmando sua presença.

- O Carlinhos vem com a esposa.

E a presença da esposa.

Olga odiava a esposa do filho.

É claro que ela não falava isso pra ninguém, mas não é como se disfarçasse muito bem.

Ela entendia de etiqueta, sabia todos os garfos corretos e as taças que usar em cada momento, mas não sabia esconder quando algo a desagradava.

Desde a primeira vez em que a menina entrou em sua casa, com aquele cabelo colorido e todas aquelas tatuagens, Olga sabia que o filho só podia querer puni-la por reclamar de todas as namoradas anteriores.

A menina não tinha nenhum apreço por regra alguma, de etiqueta ou de qualquer outro tipo. Não fazia questão de passar nenhum feriado religioso ao lado da família, tinha vezes que, inclusive, insistia em viajar, só pra passar a data bem longe de todo mundo.

Não era batizada.

Não fez primeira comunhão.

É claro que não quis casar na igreja. Nem vestir branco.

"Vamos fazer só um jantarzinho? Pra comemorar com a família?"

Não, eles preferiram que o dinheiro virasse uma viagem. Certeza que a ideia tinha sido dela, uma coisa tão anarquista como essa jamais teria vindo de Carlinhos, menino bonzinho que sempre foi.

Até começar a namorar com ela. Em pouco tempo já estava ele com as tatuagens, roupas esquisitas e até brincos.

Onde já se viu homem de brincos?

Quando a prima do marido se casou, com tudo dentro dos conformes, diga-se de passagem, é claro que ela teve que fazer alguma esquisitice e apareceu de calça.

Podia ter ido de vestido, como todas as meninas, mas parece que tem alergia a saia, só isso explicaria.

Pelo menos não botou uma melancia na cabeça, Olga sempre lembrava disso pra se acalmar.

- Eles já devem estar chegando, separa lá aquela bebida esquisita que eles gostam.

Eles. Eles. Eles nada, coisa daquela doida, provavelmente de quanto viajou pra Tailândia. Quem vai pra Tailândia, com tanta cidade na Europa pra conhecer? O que se compra na Tailândia, pelo amor de Deus?

Tanta menina normal pro Carlinhos casar e ele tinha que escolher uma que fica enfurnada em computadores programando sabe-se lá o que até tantas horas.

Não que ela conversasse sobre isso com o filho, mas todos suspeitavam até que ele tinha o menor salário da casa.

Só assim pra ela ser tão independente, tão despreocupada com a opinião dele antes de fazer as coisas.

E olha que ela nem estava falando só da decoração da casa, ou do que fazer pro jantar, mas de viagens mesmo e de mais um tanto de coisas que ela simplesmente avisava o coitado que já tinha decidido fazer.

- Oi, Mãe. Vou cumprimentar todo mundo lá dentro.

- Oi, Olga. Que lindo, tá tudo lindo, aliás, como sempre. Você sempre faz as coisas com tanto bom gosto. Precisa de alguma ajuda, falta alguma coisa?

- Não, imagina. Daqui a pouco vamos servir o almoço. Pode esperar lá dentro com todo mundo.

Ainda por cima era sonsa a infeliz. Olga tinha certeza de que ela só fazia essas coisas pra impressionar o marido, fazer média mesmo, não era possível.

E estava mais magra. De novo. 35 anos e nada de filhos. Até quando ela pretendia insistir nessa palhaçada de que não precisava ter filhos pra ser feliz? Já estava casada há 6 anos e nada de filhos. Nada de netos!

Garota egoísta.

Olga odiava a esposa do filho.

Por que aquela garota tinha que ser assim?

- Onde estão os pratos azuis?

quarta-feira, 6 de agosto de 2014

Decoração

- Amor, tava aqui pensando. A gente bem podia pendurar uns quadros, né?

- Tipo agora?

- Sim, agora.

- Que quadros?

- Aqueles pequenininhos que a minha irmã me deu, dos Beatles.

- Aham. Tá. Em que ordem você quer pendurar?

- John, Paul, George, Ringo.

- Sério?

- Sim, por que? Você penduraria diferente?

- Qual a ordem do Abbey Road?

- Sério?

- Anda, pesquisa.

- John na frente, Ringo, Paul, George. Mas se for assim eu prefiro a ordem do Sgt. Pepper. Gente!!!

- Que?

- É a mesma ordem. Só que da esquerda pra direita. Será que é sempre essa ordem?

- Eu não vou ficar conferindo todas as capas de disco agora.

- Tá, mas eu não quero a ordem do Abbey Road. As pessoas vão chegar aqui e pensar que é o nosso disco favorito.

- Mas é o meu disco favorito, Diana.

- Você não mora sozinho, Paulo.

- Tanto faz, não é como se a gente recebesse visita mesmo.

- Como é que a gente vai receber visita com essa casa? Se pelo menos tivesse uns quadros na parede...

- Tá, entendi. Vamos pendurar essa merda. Em linha? Ou tipo dois em cima, dois embaixo?

- Reto eu não acho boa ideia.

- Por que?

- Porque você não consegue colocar nada alinhado com nada.

- HEIN?

- Você realmente quer voltar à discussão da televisão?

- O que você sugere, então, Diana?

- Pendurar tudo meio loucão e a gente finge que é estilo. Um pra cá, outro pra cimão, outro bem pra baixo e assim vai.

- Loucão?

- Sim, mas equidistante.

- Então não é loucão.

- Mede, Paulo. Toma prego e martelo.

- Aqui?

- Pra baixo só meio milímetro.

- MEIO milímetro?

- Aí.

Martela martela martela martela.

- Ficou bom?

- Ai, que lindo. A gente tem quadros na parede. Amei. Agora outro.

- Aqui?

- Mais pra esquerda. Um pouco mais. Um pooooo... AÍ! Só mais pra baixo um dedo. AÍ!

- Posso martelar?

- Aham.

Martela martela martela martela.

- Gente, que emoção! Dois quadros.

- Vamos logo, Diana. Eu quero ver o jogo.

- Aff. Tá.

Martela martela martela martela martela martela martela martela.

- Pronto, né?

- Sabe o que eu pensei, amor? Que a gente podia aproveitar e pendurar aqueles seus quadros.

- Quais?

- Os que eu te dei de aniversário de namoro 2 anos atrás.

- Sutil, Diana. Sutil.

- Eu me esforço.

- Tá, pega lá os quadros.

- Já estão aqui.

- Aposto que você tem uma sugestão loucona de como pendurar, né?

- Na verdade, eu pensei que a gente pode encaixar aqui entre esse e esse e o outro bem aqui, ó.

- Hmmm...

- Que foi? Não?

- Não. Pior que ficou bom. Gostei. Tem um conceito.

- Claro que tem um conceito. Eu sou toda conceito. Conceito puro.

- Menos. Dá outro prego.

Martela martela martela martela martela martela martela martela.

- Gente! Que coisa LINDA!

- Tá bom? Gostou? Posso ver o jogo?

- Pode. Deixa só eu tirar... uma... foto... pera... tô postando no Instagram. Pronto! Lindo. Quer uma cerveja, amor?

- Boa. Deixa eu até curtir sua foto, né, senão já viu. Olha! Minha mãe comentou. Quer visitar, ver a decoração de perto.

- Hmmm...

- Você que disse que a gente poderia receber visitas. Minha mãe é visita, né?

- Sabe, a gente podia primeiro botar aquela prateleira, né? Se ela vier aqui agora vai ficar reparando que a gente tem pouca coisa, vai achar que a gente é pobre, tá passando necessidade, que você devia ter ficado na casa dela e...

- Respira, Diana.

- Hum.

- Que?

- Acabei de notar que essa ordem tá parecendo com a capa do Revolver.

- E?

- Eu tenho péssimas memórias desse disco.

- Quer que eu desconverse?

- Por favorzinho?

- Posso deixar os quadros assim?

- Aham.

- Tá. Pega a cerveja?

- Te amo.


segunda-feira, 2 de junho de 2014

O cão

Eram 19h. André nem precisava olhar no relógio pra saber que eram 19h. Todo dia, naquele mesmo horário, religiosamente, era possível ouvir ao longe os latidos de um cachorro.

"O dono deve chegar em casa nesse horário",  ele sempre pensava.

Pois não eram 19h, mas 17:45.

- Ow, Jefferson! O cachorro já tá latindo! São nem 18h, cara...

- Aposto que o cara voltou pra casa numas de dar um Fla x Flu na mulher. Quer apostar quanto que ela tá botando chifre nele?

- Você viaja, hein?

- Beleza. Um dia a gente descobre onde é que esse cachorro late e descobre se eu não tô certo.

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Dona Zuleide era casada com seu Ayrton há quase 40 anos. Eles se conheceram no colégio e casaram assim que ele se alistou no exército. Tiveram 2 filhos, Paulo e Débora. Ele morava no Canadá, ela deu a eles o único neto, João.

Dona Zuleide fazia quentinhas pra fora, mas queria mesmo era ter estudado pra ser professora.

- Você já arrumou um marido, Zuleide. Vai fazer faculdade pra que?

Por quase 40 anos ela foi a esposa, a mãe e a avó. Mas nunca conseguiu ser a Zuleide.

- Mãe, arruma as coisas que eu te arrumo alguma coisa aqui no Canadá. Larga o pai, mãe. Faz tempo que tu não é feliz. Eu sei que tu ficou por nossa causa, mas eu e a mana já tamos grandes, ela tá até casada, com filho, tem nem porque tu ficar aí pra cuidar do pai.

Seu Ayrton nunca deixou faltar o pão na mesa, mas também nunca faltou um rabo de saia fora de casa. Era do tipo respeitador, mas só da porta pra dentro.

Da porta pra fora eram outros 500.

Dona Zuleide sempre soube.

- Casamento é assim, Zuleide. Você sacrifica algumas coisas pra ganhar outras. Pelo menos tu tem casa, teus filhos nunca passaram fome, estudaram em colégio bom. E vamos conversar que o Ayrton nunca te bateu, né? E ele é homem, é normal dar essas puladinhas de cerca.

O problema não eram as puladinhas de cerca. É que ele sempre teve tudo que ele quis e ela deixou tanta coisa de lado pra fazer aquela família feliz.

Ela só queria ser professora...

- Eu vou, meu filho. Deixa só eu aprender inglês...

Então Dona Zuleide conheceu Jorge, um rapaz da vizinhança. Jorge dava aulas de inglês num curso ali pertinho, mas era nas aulas particulares que ele conseguia uma graninha melhor pra poupança do casamento.

Maria Alice, sua noiva, era moça de interior, sempre sonhou com uma festa bonita, cheia dos primos, tios, amigos e pompa que ela via nas novelas e filmes. Jorge queria que ela tivesse tudo isso, mas o salário no curso nunca seria suficiente pra pagar pela festa.

Foi um amigo do vizinho do porteiro do curso que comentou com Dona Zuleide que Jorge dava aulas em casa e o mesmo amigo fez com que o vizinho contasse pro porteiro que ele sabia de alguém que precisava de um professor.

Dona Zuleide não tinha o dinheiro pra pagar pelas aulas, mas podia ensiná-lo a cozinhar e garantir a quentinha do almoço enquanto ele fosse seu professor.

E então, todas as terças e quintas dali pra frente lá estava ela, cada vez mais longe dali.

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Fazia 5 anos que Júlio tinha largado seu emprego de contador pra seguir o seu sonho: adestrar cachorros.

A vizinhança onde morava tinha os cãezinhos mais educados de toda a região e ele se orgulhava muito disso.

Orgulhava-se mais ainda do seu cachorro, Thor.

- Ele não late, né Júlio? - Perguntou certa vez sua vizinha, dona Zuleide.

- Late, claro que late, mas quase sempre só com o meu comando.

- Será que você poderia me fazer um pequeno favor?

- Claro, dona Zuleide, qualquer coisa pela senhora.

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- Quem é o rapaz que tá frequentando tua casa, Ayrton? 

- Que rapaz, Osvaldo? 

- Um rapaz, novo, alto, pintosão, vem aí toda terça e quinta no meio da tarde. 

- E eu sei lá do que você tá falando, Osvaldo? Não tô fazendo obra em casa nem nada, não tem porque ter um rapaz frequentando minha casa. 

- É... De repente eu me enganei. Sei lá. Achei que fosse na tua casa. De repente não é. Mande um abraço pra Zuleide. 

- É, você deve ter se enganado sim. Mas pode deixar que eu mando um abraço pra ela, pode deixar. 

Aquela conversa foi suficiente pra que Ayrton ficasse com a pulga atrás da orelha. Quem era o rapaz? Que rapaz era esse e o que ele estava fazendo na casa dele enquanto ele estava fora? 

Ele nunca foi o marido exemplar, ele sabia bem disso, mas Zuleide não sabia. Sempre teve muito cuidado pra esconder bem suas coisas, o que acontecia fora de casa não tinha nada a ver com ela. 

Ela era sua esposa, mãe dos filhos dele, não era como as outras. As outras eram as outras, eram só diversão. Ela era coisa séria. 

Mas talvez ele não tivesse sido tão discreto assim. E, se ela soubesse, ela podia estar querendo se vingar. 

Será? Será que Zuleide seria capaz de se vingar? Pior, seria ela capaz de traí-lo? E com um garoto mais jovem, ainda por cima? 

Não, claro que não. 

Por uma semana Ayrton chegou em casa pra encontrar sua janta pronta, o pijama e os chinelos separados, como sempre, mas não conseguia parar de pensar no tal homem que Zuleide estaria recebendo em casa. 

Na casa dele, ainda por cima! 

Pelo menos ele teve a cortesia de fazer tudo fora dali, afinal ele respeitava aquele casamento.

Até que ele não aguentou mais. 

- Seu José? Eu posso falar com o senhor? 

- Claro, Ayrton, entre. Puxe uma cadeira. 

- Obrigado. O senhor sabe que eu não sou de faltar, não é mesmo? Nem de sair cedo, aliás, eu chego cedo! E vou embora sempre depois do horário. E eu não estou reclamando, de jeito nenhum, é que eu preciso ir embora um pouco mais cedo hoje, porque...

- Mas é claro, Ayrton! Tá tudo bem com você? Eu posso te ajudar em alguma coisa? 

- Não, não, tá tudo em, é que eu só preciso resolver um probleminha em casa, não é nada demais, é só um probleminha. 

- Bom, se você precisar de alguma coisa é só você me dizer. Qualquer coisa, você me diga! 

- Muito obrigado, muito obrigado mesmo, seu José. 

Ayrton pegou um táxi e voou pra casa. Era bem naquele horário que Osvaldo tinha comentado que o safado estava lá. Devia estar lá agora, fazendo sabe-se lá o que com sua mulher, desgraçado. 

- Toma, tira 20 aqui, fica com o troco. 

17:45, rapidinho. Com certeza ele ia pegar o infeliz com a mão na massa. 

- Opa, boa tarde seu Ayrton. Thor, shh. Thor! Para de latir, Thor. 

- Boa tarde, Júlio. Você me desculpa, eu não tô podendo conversar. Seu cachorro tá agitado, né?

- É, eu não sei o que tá acontecendo com ele. Ele não é de ficar assim. THOR! SHH! 

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- Mas esse cachorro do vizinho hoje tá nervoso, né? 

- Pega as coisas, Jorge, vem, deve ser meu marido. 

- Como assim seu marido, dona Zuleide? 

- Demorou até pra ele desconfiar. Algum fofoqueiro deve ter contado que você tava vindo aqui...

- E a senhora sabe disso pelo cachorro? 

- Digamos que eu tenha um acordo com o vizinho, eu te explico outro dia, agora sai pela porta dos fundos. 

- Tá, a gente continua outro dia! 

- Sim, sim... Tchau, obrigada! 

- Zuleide? Zuleide? 

- Aqui, Ayrton, tô na cozinha. Chegou cedo, né? Tá tudo bem? 

- Tá, tá tudo bem. Tá sozinha? Ouvi você conversando...

- Tava no telefone com o Paulinho, ele acabou de desligar. 

- Ah... Que cheiro bom aqui, né? Tá cozinhando? 

- Tô, tô sim. Tava preparando uma surpresa pra você. 

- Ah, é? E é o que? 

- Coffee cake. 

- Ó que chique. E o que é isso?

- É tipo bolo normal, mas é em inglês. 

- E desde quando você fala inglês, mulher? 

- Desde nunca, falo inglês nada, só faço bolo. Quer? 

- Eu quero. Tem café? 

- Eu passo agora pra você. Quer? 

- Quero. Vou só dar uma olhadinha na casa, eu juro que ouvi um barulho esquisito... 

- Deve ser só o cachorro do vizinho, mas vai lá. Vou fazer teu café e cortar o bolo. 

- É... deve ser. Cachorro doido...




domingo, 11 de maio de 2014

Disse me disse

- Ah lá aquele cara sendo babaca de novo.

- Aham

- Sério, não sei como esse povo aguenta ser amigo dele, as besteiras que ele fala.

- Aham.

- Olha aqui, olha!

- Não, cara. Eu tô tentando trabalhar.

- Porra, você não pode olhar um instante? Olha o que ele disse!

- Cara, foda-se o que ele disse. E foda-se o que você acha, eu tô tentando trabalhar.

- Ui, nossa, ele tá tentando trabalhar.

- Beleza, deixa eu ver.

- Aqui.

- Legal, eu concordo com ele.

- Como assim?

- Olha, eu tava querendo evitar essa conversa, mas lá vai. Você conhece esse cara?

- Nem quero.

- Por que?

- Porra, as paradas que nego fala dele... Quero nem conhecer. É o maior mau caráter.

- Sério? E você sabe disso só pelo que os outros falam dele?

- Pô, precisa mais?

- Sei lá, você faz o que da vida mesmo?

- Vai se fuder, cara, você sabe que eu sou jornalista, que nem você.

- Ah, tá. Só queria checar se você tinha esquecido disso.

- Não entendi.

- Se alguém te disser agora que tem uma bomba no vão do elevador do prédio, você vai checar pra ver qual é ou você vai escrever uma matéria sobre isso e apresentar correndo pro seu editor?

- Vou checar, né? Tá me estranhando?

- E por que você não tem esse mesmo cuidado quando vai falar de um cara que você nem conhece?

- Pô, tô falando com você aqui, você é meu broder e tal.

- Para, cara. Eu já vi você falando do cara pra quem quisesse ouvir, em mesa de bar, Twitter, Facebook, você nem se preocupa em averiguar as paradas.

- Qual é a tua, hein Carlos?

- A minha, André, é que eu conheço o cara e eu nem entro nesse mérito. Você nunca sequer me viu defender o cara quando você enche a boca pra falar que ele é isso, fez aquilo, um bando de coisa bem séria pra você falar por aí sem ter um pingo de prova, sabe? E eu fico de boa, porque eu não quero entrar nessa discussão, nesse mérito. Mas eu tomaria cuidado se eu fosse você.

- Isso é uma ameaça?

- De jeito nenhum, não sou desse tipo.

- Quer dizer então que você conhece esse bosta?

- Conheço, André. E conheço a família dele, a mulher dele, os filhos dele.

- Sério que alguém casou com ele? E teve filhos com ele?

- Você não aprende, né?

- Sei lá, cara, as histórias são foda.

- História da tua mulher?

- Pô, minha ex.

- Sério?

- É. Mas nem quero falar sobre isso.

- Que bom, nem eu. Não sabia que você era desse tipo.

- Que tipo?

- Que odeia por tabela. E relativiza as coisas com as quais você deveria ser responsável.

- Que pesado, cara.

- Te garanto que você já falou coisa bem mais pesada do cara.

- Cara, na boa, tu conheceu a ex-namorada dele?

- Você conheceu?

- Não, mas minha ex era amiga dela e vários amigos conhecem ela.

- Eu conheci a garota sim. E posso te falar? Nunca gostei dela. Minha mulher, então, inventava qualquer desculpa pra não ter que ir em encontro da galera quando sabia que ela estaria lá. A Maria odiava a Patrícia com todas as forças. Odeia ainda, na real.

- Como assim, cara?

- Pois é, essa é a diferença entre nós dois. Eu não vou te falar nada do que eu sei. Ou melhor, nada do que eu ouvi. Sabe por que? Porque eu não tenho provas. E hoje ela tá lá naquela emissora, apresentando o tempo e eu não quero que chegue coisa lá que atrapalhe a Patrícia na carreira dela. Ela já deixou o cara em paz, coitado.

- Ela seria capaz de ir atrás dele? Depois de tanto tempo?

- Eu não vou falar sobre isso, André.

- Porra, você levanta a bola e corta a conversa assim?

- Eu não levantei bola nenhuma, eu só comentei que o tanto que você ouviu falar de ruim dele eu ouvi falar de ruim dela. E até já vivenciei algumas coisas, mas eu não me meto na vida dos outros. Mais ainda, eu não transformo em missão da minha vida ficar arruinando a vida dos outros.

- Qual é,  cara? E eu transformo?

- Também não disse isso, mas você tem uma aba de pesquisa de um cara que não é teu amigo e você só odeia porque sua ex um dia te disse alguma coisa.

- Nem é isso...

- Ah, é, desculpa. E alguns amigos também.

- Pô...

- De todo modo, cara, eu concordo com o que ele escreveu aí.

- É. Eu não concordo muito não. Mas tá bem escrito até.

- Você não precisa concordar com ele não. Nem comigo.

- Eu sei que não.

- Só duas coisas: Vocês iam se dar bem. E pensa aí como você ficaria se tua ex começasse a falar coisas desse tipo de você pros amigos e a história escalasse como se fosse verdade, como você ficaria.

- Ela não faria isso.

- É, ele também achava isso da Patrícia.

- Como assim a gente ia se dar bem?

- Ou não, André. Sei lá. Tô trabalhando...